Depois de todo o mediatismo que envolveu o filme “Listen”, de Ana Rocha de Sousa, a intensidade da minha curiosidade em relação ao filme foi crescendo, até um destes dias destes ter conseguido, enfim, visualizá-lo.
No cinema, não basta contarmos uma história, por mais bem intencionada que ela seja, por mais forte que seja o seu conteúdo moral e social. Mas, a verdade é que uma história, na forma mais nua que nos possa ser contada, parece ter sempre um poder enorme para nos deixar ficar pela imediatez da impressão que nos causou. Deixamos de ouvir as narrativas com o mesmo encantamento com que a criança as vive, porque ela é chamada a criar o seu imaginário próprio, porque ainda não desenvolveu um sentido de justiça que escoa o seu mundo imaginário para dar lugar a uma interpretação moral imediata – por mais moral com que essas histórias a queiram alimentar. A criança não se indigna com as histórias, absorve-a e recria-a na sua imaginação tornando-a fonte do seu prazer. Por isso, nunca será suficiente uma história que só lhe seja contada uma vez. O adulto desaprende o prazer das histórias no momento em que elas passam a ser um mero objecto de entretenimento desencantado, um mero fluxo de informação que lhe represente (e repita) o seu mundo corriqueiro. Já não se repete a história pelo prazer da história, aquilo que se repete é, narcisicamente, o nosso mundo. Qualquer história é boa, desde que eu me reveja, de alguma forma, no seu conteúdo. Rejeitamos algo que nos compreenda para buscarmos algo que possamos, imediatamente, compreender. E uma história só nos abraça quando nos envolve, pela sua forma, pela vivacidade com que tudo nos aparece.
O artista deve ser como o artesão onde em toda a sua obra se note o carinho especial que ele tem pela matéria que gentilmente trabalha e aplaina. É neste ponto que o filme de estreia de Ana Rocha de Sousa mostra as suas fragilidades, que se acumulam, ao longo do filme, como uma bola de neve. No pequeno excurso introdutório que acima escrevo, quis passar a ideia de que a arte não reside na história, a arte está no acto de a contar. Se aligeirar o contar para comunicar apenas o conteúdo de uma história, deixo de lado tudo o que poderá preservar o amor pela arte de contar histórias.
Saltando agora para uma análise mais detalhada dos sintomas deste aligeiramento formal, penso que um pensamento muito sintético de Jean Cocteau pode ajudar a esclarecer a minha visão sobre este filme. Cocteau disse que, num filme, tudo aquilo que não é cru, torna-se decorativo. Ora, em todos os momentos do filme, em todas as suas opções formais, em nenhum momento notei crueza. O primeiro grande sintoma está na cena em que a mãe estende um cartão e deixa as duas crianças num beco para ir ao supermercado. Esse beco parece ter sido totalmente descontaminado de toda a sujidade que até a presença do próprio cartão parece completamente dispensável. Este cartão torna-se um elemento inútil, e este sintoma de descontaminação torna-se crónico ao longo de todo o filme. Os interiores aparecem apenas no seu elemento decorativo. O papel de parede não tem afectos nem suores… Por vezes tive a ideia que ainda poderia ver a sair daquela casa os trabalhadores que foram lá dar um pequeno arranjo para que ela pudesse estar mais apresentável para receber a câmara, como a família que sabe que vai receber visitas importantes. No lugar da limpeza, o cinema funciona melhor quando se dá uma certa ordem à sujidade que se encontra. Limpar demasiado pode significar retirar a vitalidade de um espaço, esvaziá-lo do seu brilho próprio.
Esta maquilhagem superficial não termina nos espaços, os próprios actores e as suas fisionomias não me convencem, em nenhum momento, de nada a não ser que foram retirados de um catálogo de beleza para serem maquilhados de pobreza. Neste ponto, lembro o pensamento bressoniano de que é impossível, para os actores do star system, e a quem nos habituamos a ver em histórias de amor e a mostrarem-se em toda a sua beleza, que nos consigam convencer da sua verdade. São conhecidas as intransigências formais de um realizador do quilate de Bresson; porém, penso que uma boa escolha fisionómica de um actor ou actriz, uma boa mise-en-scène – ou mise-en-ordre – poderão, ainda, fazer-nos crer em alguma verdade, mesmo quando contaminada por uma pequena dose de falsidade – para Bresson, bastaria uma gota de falsidade para contaminar toda a verdade possível de um filme. Para além das excessivas maquilhagens, que pretendem esconder aquilo que é impossível esconder, as actuações também perdem à partida o seu poder. No desenrolar do filme, parecia estar a assistir a um choque em cadeia, a uma queda de todos os momentos, num efeito dominó provocado por todos esses elementos, que desde o início aparecem, de alguma forma, falsificados, vazios do seu brilho de verdade: os espaços, os objectos, as fisionomias e as actuações.
A máquina fotográfica de cartão é outro exemplo desta queda do filme no reino da decoração. Este elemento, na sua primeira aparição, levou-me a pensar num recurso simbólico narrativo, possivelmente, uma arma de Tchekhov? Porém, esse ressurgimento nunca (re)aparece como força significativa. É-lhe dado um uso desligado da narrativa, tornando-se num mero adereço. Ao ver o aparecimento desse elemento, – que admiti possuir uma carga simbólica, como um pedaço de recordação que remete para algo concreto, vivo -, mais tarde, acabei por perceber que, afinal, ele nasceu órfão daquilo que lhe viria dar vida e força. E assim, só lhe consegui sentir o vazio, uma não comunicação, e mais uma vez, uma presença desnecessária, meramente decorativa. Não chega a ser um MacGuffin, por não conseguir fazer mover nada à sua volta. Tornando-se, ao meu olhar, um elemento desmasiado visível para permanecer inerte.
Não me irei alongar mais, uma vez que, penso ter mostrado como esse aligeiramento formal se torna uma presença constante ao longo do filme, fazendo-o colapsar em todas as dimensões. Remetendo, uma vez mais, para o pensamento de Cocteau, entre a crueza e o decorativo, penso que há um grande paralelismo com o cinematógrafo de Bresson: no cinema, há que separar o que é artificial daquilo que é artístico/artesanal; a naturalidade da natureza; o falso do verdadeiro. Os pensamentos de Cocteau e Bresson acabam por encontrar-se, se pensarmos que a crueza transmite verdade e a decoração, a falsidade e artificialidade. E, no cinema, quando a primeira não é conseguida, estará condenado à segunda. Neste chão profano, basta-nos, por vezes, ter acesso a um pequeno vislumbre de verdade e de beleza. E é essa esperança que guardo em mim, sempre que vejo um filme. Poucos são aqueles que contêm, ainda, pedaços cristalinos de Verdade; mas, dada essa escassez, a maior parte das vezes já nem exijo mais de um filme do que ser bem enganado.
É bom que o crítico tenha a humildade suficiente para admitir uma certa dose de cobardia. É o realizador, sobre quem lançamos o nosso olhar com uma presunção de elevação moral, quem se expõe à falha. Nós, ao vermos um filme continuamos a ser chamados a jogar como o espectador que assiste, desde um lugar mais ou menos resguardado, a um jogo de ténis. Participamos no jogo como aquele espectador que acirra os intervenientes na esperança que o jogo nunca acabe – e não é esta vontade de eternização do cinema que dá o impulso a todo o crítico para escrever? E, se estivermos a ajuizar um McEnroe de câmara em punho, podemos, através de alguma imprudência, dar um elã de fúria a uma força criativa, que numa próxima jogada, estará pronta a mostrar-nos como se faz. E nós, desde a bancada, com as nossas palavras, também falhamos. Por isso, vejam o filme. Talvez me (vos) tenha enganado.