“Lobo e Cão”, de Cláudia Varejão: A sacralização dos afetos

"Lobo e Cão", de Cláudia Varejão "Lobo e Cão", de Cláudia Varejão

Voltar ao cinema de Cláudia Varejão é como voltar a casa, estar com a família e os amigos, reencontrar a intimidade perdida, saber que o colo ancestral está sempre lá de onde se partiu para terras distantes ou menos distantes.

A partida nem sempre é física, como acontece em Lobo e Cão, há muito que os adolescentes que o protagonizam se encontram longe, tão longe quanto os seus sonhos de liberdade e aceitação os conseguem transportar.

Desejam, contudo, o colo dos amigos e da família, na tentativa de reconciliar os sonhos com a realidade emocional das suas infâncias ainda tão próximas. Nessa e noutras divisões, o filme tenta encontrar uma aproximação, uma reconciliação, mesmo que nem sempre seja possível.

“Lobo e Cão” debruça-se com naturalidade sobre as imensas contradições que transbordam dos seres humanos, sobretudo quando não são já crianças, mas também ainda não se podem apelidar de adultos.

O selvagem e o domesticado, o exibicionista e o recatado, o esperançoso e o desiludido, entre tantos outros estados de espírito que coexistem mesmo que não se queira. O que mais espanta é a sua convivência e aceitação com a maior das naturalidades, aproveitando ainda o pano de fundo que os Açores oferecem para demonstrar ainda mais esse abraço dos opostos.

Quando Cláudia Varejão abraçou os Açores, especificamente a ilha de S. Miguel, fê-lo com a curiosidade de sempre: queria saber mais sobre aqueles jovens transgénero de Rabo de Peixe que se encontravam naturalmente com os seus familiares tradicionais na rua. Aquele contraste aguçou-lhe a necessidade de saber mais e foi ao encontro de uma comunidade real, embora o seu filme seja ficção.

Uma brilhante ficção montada com a ajuda de um conjunto de atores amadores que se entregaram de coração a um filme que é, para além disso, um projeto. A confiança com que todos eles se apresentam nos seus papéis não seria fácil de conseguir em dois dias e a admirável entrega da realizadora em mudar-se temporariamente para a ilha para lá viver demonstra não só uma enorme preocupação em entrosar-se com as pessoas, mas também em não defraudar a realidade em nome da ficção.

E se “Lobo e Cão” em muitos momentos é mais um desejo para o futuro daqueles jovens e das suas famílias mais do que uma realidade, é também o reflexo genuíno do dia-a-dia daquela comunidade e das suas ansiedades e sonhos.

A realidade desta comunidade transgénero de S. Miguel é precisamente a de uma aceitação escondida, tal como se encontra no filme, e trazer isso para a luz do dia é dar-lhe uma visibilidade merecida. Este é um filme que quer mostrar e falar sobre o tema, quer dar-lhe nome, quer abraçá-lo, aceitá-lo e fá-lo de modo tão genuíno que quase se poderia acreditar que Cláudia Varejão fez sempre parte daquela imensa família.

Em certo sentido, faz. De que outro modo seria possível transpor para película tamanha sensibilidade, tamanha coragem? Coragem em dar a conhecer, mas, acima de tudo, em colocar o espetador face a face, frente a frente, com estas pessoas, com estas caras, com estes nomes, com as suas vivências, para que, em realidade, ninguém mais possa desviar o olhar.

Ana Cabral à esquerda, Cristiana Branquinho à direita, Ruben Pimenta a meio ©Matilde Viegas
Ana Cabral à esquerda, Cristiana Branquinho à direita, Ruben Pimenta a meio ©Matilde Viegas

É um confronto amigável, claro, mas do qual dificilmente alguém se poderá negar a aceitar: é feito de mãos e coração aberto. Já não se caminha no plano do abstrato, das possibilidades, cada uma destas pessoas é um rosto, uma vida, um mundo incomensurável, mas real.

É ainda um admirável e sensível filme sobre as mulheres adolescentes à descoberta da sua sexualidade, à descoberta daquilo que querem, afinal, mesmo que acabem por não saber qual é a resposta definitiva – não faz mal não obter respostas.

Cláudia Varejão expõe de um modo tão próximo quanto isento de julgamentos essa exploração, mostrando e deixando que se ouçam, sem música de fundo, os gestos, os beijos, entre duas raparigas que em breve serão mulheres.

Grande parte do seu filme é passado no campo do profano, dos sentimentos, dessas descobertas, mas o sagrado é impossível de ignorar, numa ilha que vive ainda muitas das tradições religiosas antiquíssimas.

Certo é que, num esforço por encontrar aceitação no seio das suas famílias, os jovens de “Lobo e Cão” procuram integrar-se até nessas tradições embora o sucesso que daí advém seja subjetivo e muito lento. Difícil é mudar as mentes, mais do que os corações, e o preconceito é uma realidade que vai muito para além daquilo que os filmes mostram, no que diz respeito à comunidade LGBTQI+.

“Lobo e Cão” está assumidamente focado nesta comunidade isolada que vive numa localidade igualmente isolada que os aceita em surdina, é um filme sobre a comunidade LGBTQI+ e ser assumido sobre isso é dar visibilidade não só ao amor e aos afetos, mas ao que significa ser cada uma daquelas letras do alfabeto (e outras, muitas mais) em locais como S. Miguel.

Se, por um lado, há uma aceitação tácita entre ambas as comunidades, por outro lado não se fala sobre o assunto dando-lhe um nome e uma cara e, por isso, “Lobo e Cão” é tão importante. O trabalho que deixou feito para lá do filme dá-lhe ainda mais importância, estando na origem da associação (A)MAR, um centro de apoio à comunidade LGBTQI+ a funcionar na ilha desde 2021.

Como objeto fílmico, “Lobo e Cão” tem a marca da sensibilidade de Cláudia Varejão nos gestos mais simples, filmados como se fossem os únicos e os últimos, numa necessidade imensa de captar o simples como se fosse para sempre.

Um olhar atento, humano, íntimo, só possível porque existe confiança e proximidade entre quem é filmado e quem filma, num trabalho constante de não deixar que a câmara seja um empecilho ou obstáculo em captar a realidade como se lá não estivesse ninguém a ver.

“Lobo e Cão” é magistral a captar, ainda, a ilha como se de um ser vivo se tratasse, tanto nos sons como nas imagens. Não é o seu foco principal, mas sabe-se que está lá sempre, mais que não seja pelos sons de baleias que a espaços surgem de modo tão discreto que é fácil passar despercebido – uma espécie de mantra sonoro.

Lobo e Cão, a ilha

Esta insularidade tanto é beleza como fatalidade, como sempre o foi, desde os tempos em que as pessoas eram uma só coisa e outras não podiam ser. Eram religiosas, baleeiros, donas de casa, esposas e esposos, a sofrer em silêncio um horizonte que se abre para o mar infinito.

Não negando a felicidade possível que o passado encerra, “Lobo e Cão” olha para esse passado, para o presente e desenha possíveis futuros que, aliás, têm sido os futuros das pessoas da ilha que ali não encontram futuro.

Sair, ir para o Canadá, para a América, formar novas comunidades no exterior, quantos não são os que foram e suspiram depois por voltar, mesmo que a sua relação com a terra mãe seja conflituosa.

“Lobo e Cão” é um filme absolutamente essencial, do qual é impossível sair da mesma forma que se entrou, se se estabelecer com ele a necessária ligação emocional. É preciso estar atento e com disposição para aceitar a minúcia, a paciência, uma certa timidez audaz: este não é o local e o tempo para fogos de artifício, embora também os haja.

O sagrado encontra-se nos gestos mais profanos, eliminando fronteiras e denominações ultrapassadas, mostrando os corpos, os suspiros, os desejos físicos, os sofrimentos de modo tão genuíno que pode pensar-se que aqui está a vida vivida e não a ficção.

“Lobo e Cão” é um portentoso exercício de cinema que deixa marca não só no momento em que é visto como depois de se sair da sala de cinema, não se esquece. O espetador levará consigo a beleza dos planos, os momentos mais ligeiros de festa kitsch, as expressões que nem sempre se conseguem entender por entre a pronúncia mais cerrada, mas acima de tudo, a experiência de ter estado em comunhão sagrada com o profano.

"Lobo e Cão", de Cláudia Varejão
“Lobo e Cão”, de Cláudia Varejão: A sacralização dos afetos
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