Há exatamente 50 anos, saiu das universidades para as ruas a inquietação de uma juventude que entre greves e barricadas causou uma das revoluções mais marcantes da Europa. Num período em que a França se mostrava um país estagnado no tempo e no espaço, os jovens, força de mudança, agitaram a pátria despoletando uma onda de reivindicações ideológicas, seguindo pensamentos de Herbert Marcuse ou Guy Debord.
As manifestações feitas na época atingiram proporções tão grandes que, nesse ano, o Festival de Cannes foi interrompido. Pela primeira e, até à data, única vez na história, o festival de cinema mais conceituado da Europa fechou as portas.
Acredita-se que tudo começou a 13 de maio, quando Godard, Truffaut e Lelouch chegaram à 21.ª edição do festival com o intuito de trazer os ventos da revolta vindos da capital. Mas a história não ficou por aqui e, mais tarde, no dia 15, Roman Polanski, Louis Malle e a atriz Monica Vitti, parte do júri dessa edição do evento, revelaram que haviam aderido ao protesto e Alain Resnais, Milos Forman e Carlos Saura, cujas obras disputavam nesse ano a Palma de Ouro, retiraram-se da competição.
O foco em Cannes tem que ver com o papel crucial que a sétima arte teve na agitação que foi o Maio de 68, devido aos ideais revolucionários da causa coincidirem com o pensamento de muitos cineastas da Nouvelle Vague, tais como Jacques Rivette, François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer e supracitado Godard. Com o foco neste movimento artístico e uma juventude revoltada a lutar pela transgressão moral e estética, o Palácio dos Festivais foi tomado nos dias do festival para dar lugar a mais um espaço de discussão política.
Ao celebrar-se este ano o quinquagésimo aniversário deste importante marco histórico, resolvemos homenageá-lo com uma antologia de obras do cinema.
O Maoista (La chinoise, 1967), Jean-Luc Godard
Em 1967, Godard retratou nesta obra aquilo que viria a ser o espírito da juventude do Maio de 68 e, por essa razão, “O Maoista” é considerado um dos filmes mais emblemáticos do cineasta.
Servindo atualmente como retrato de uma época, na altura o filme foi visto como panfletário. Maoismo, anarquismo, marxismo, situacionismo, terrorismo. Tudo coexiste no universo que o cineasta retrata no interior do apartamento que Veronique (Anne Wiazemsky), Guillaume (Jean-Pierre Léaud), o ator, Henri (Michel Semeniako), o economista, Kirilov (Lex De Bruijn), o pintor e Yvonne (Juliet Berto), a prostituta, partilham e no qual conspiram e discutem as ideias revolucionárias de Mao-Tsé-Tung.
Assim, através dos ensinamentos de Mao e da revolução cultural que este havia trazido, este grupo de estudantes luta para encontrar a sua posição no mundo e é através desta luta que Godard procura pôr em causa a ação, os vícios e os diálogos dos “aprendizes de esquerda”. Godard não poupa os seus personagens e há, claramente, um propósito em condenar a pressa e a fragilidade com que as opiniões destes se preparam para uma guerra política controversa.
Os Dias de Maio, 1978, William Klein
Em 1978, através de um documentário apaixonante, torna-se evidente a força da filmagem direta do Quartier Latin em Paris, a pedido dos estudantes da Sorbonne, assim como toda a carga crítica que o file carrega.
O filme é uma tentativa de dar uma voz aos trabalhadores, donas de casa, estudantes, activistas, intelectuais, pessoas que raramente tinham contacto umas com as outras… As discussões e ideias destes intervenientes invadiram toda a cidade, os rumores, os sonhos, as intrigas, as revoltas e as crises colmatam num conjunto de deixas delirantes e acima de tudo captadas no momento. É retratada a contestação à autoridade, os sentimentos dos grevistas, o dia-a-dia nas assembleias, as barricadas, os confrontos, as discussões políticas, as manifestações, as ilusões, e a esperança… De câmara na mão, Klein produziu uma crónica preciosa, perturbadora e fiel aos acontecimentos da grande revolução vivida em França naqueles tempos. Para quem ambiciona compreender e sentir o que se passou efetivamente nas ruas de Paris, esta é uma obra indispensável e inesquecível.
Os Sonhadores (The dreamers, 2003) Bernardo Bertolucci
Começando em Fevereiro de 68, o filme evoca os primeiros pensamentos revolucionários geradores das manifestações do Maio desse mesmo ano. Celebrando o que foi ser um jovem idealista naqueles tempos, o filme recria muito aproximadamente a atmosfera da época.
Este não quer de todo ser um filme político, não quer também, de nenhuma forma, relatar os eventos de Maio de 1968, se assim fosse ter-se-ia feito um documentário… O filme quer somente passar para o ecrã, simbolicamente, o inconformismo daquela época, a luta e a revolução, a parelha ideal entre sonho e política.
“The dreamers” conta a história de três jovens: Matthew (Michael Pitt), Isabelle (Eva Green), Theo (Louis Garrel). Todo o enredo gira à volta destes personagens, dos seus sonhos, da política, do cinema, do sexo. A história começa por ser narrada por Matthew mas rapidamente passa a ser contada pelos três, aquando das evocações visuais que remetem para uma vontade constante de vida e de mudança. O amor daqueles jovens é o que de mais forte passa para o observador, fazendo com que o amor pelo cinema gere mais amor pelo cinema e que o sonho individual gere o sonho coletivo.
Os Amantes Regulares (Les amants réguliers, 2005) Philippe Garrel
Esta obra retrata a época conturbada que foi o Maio de 68, com as revoltas liberais e estudantis em França através das memórias do cineasta Philippe Garrel. Sendo uma obra nitidamente autobiográfica, Louis Garrel é, como não poderia deixar de ser, quem desempenha o papel que teria sido o do seu pai e é neste exercício estético de lembrança da Nouvelle Vague que nasce uma obra de tal forma próxima do espectador, que o faz sentir como parte integrante do enredo.
Mostra-se uma juventude decadente e inovadora. Mostra-se a geração que renovou a ideia de liberalismo. Mostra-se a juventude que vivendo em sonhos e devaneios se cansou de ver uma vida vazia e uma França estagnada.
O filme mostra o momento após a falhada revolução estudantil de 68, no qual um grupo de jovens se muda para uma casa herdada por um dos intervenientes. Ao partilhar uma vida, evidenciam-se questões como a paixão pelas artes, o consumo de drogas exaustivo, o sexo ocasional… é dentro deste ambiente sonhador que François (Louis Garrel), poeta de 20 anos, e Lilie (Clothide Hesme), jovem escultora, vivem o seu romance. A forma como cada um deles vê o romance é distinta e contraditória e a inércia boémia acaba por substituir o falso idealismo do casal, espoletando uma onda de desequilíbrios mentais e emocionais que colmatam terminando com o sonho.