Acontece surgir-nos filmes do qual ligamos emocionalmente, não permitindo-nos uma capacidade de exercer nele uma visão imparcialmente objetiva. Para esses casos, algo tem que ser dito e relembrado quanto ao papel da crítica e principalmente a da existência do crítico de cinema – não somos seres isentos de sentimentos, nem a expressão da crítica cinematográfica deve ser exclusivamente matemática, científica e puramente analista. Portanto, quando deparo com obras como este “Mais uma Rodada”, o mais recente trabalho do dinamarquês Thomas Vinterberg (um dos fundadores do Dogma 95, ao lado de Lars Von Trier), torna-se umbilical a minha objetividade com o meu ser subjetivo (… agora, pauso, tomo o shot de whiskey que tinha meu lado e prossigo …).
Mais uma vez, Mads Mikkelsen (um fenómeno da natureza nórdica), o “parceiro do crime” de Vinterberg, é um professor … mas atenção, não é a “A Caça” novamente replicada, mas antes o “caçado”, porque o nosso protagonista, Martin, é um “rascunho” tristonho de figura, aborrecida (como pergunta à sua mulher cada vez mais distante de si), e quanto à sua performance profissional, atrapalhada, sem rumo e gradualmente desesperada. O nosso professor não se orgulha da sua idade, o tempo não volta atrás como bem sabemos e os sonhos são concretizados ou simplesmente varridos das nossas projeções (… aqui tomava outro shot, mas julgo não ser a altura ideal). Contudo, é num jantar de anos, num convívio entre homens de meia-idade e amigos, seio familiar que suscita confissões anexadas a fragilidades, não apenas de Martin, e sim de todo o grupo. Desabafos que são motivados pelo sabor do álcool intercalado por petiscos e iguarias (… agora sim, pego no meu shot … mais um … estou pronto para continuar).
Tudo começa com uma ideia mirabolante que depressa se torna num possível escape. Segundo um filósofo dinamarquês o ser humano nasce com uma deficiência de 0,5 litros de álcool no sangue, o que seria crucial para uma vida mais confiante, divertida e mais apaixonada. Eis a receita para a felicidade, acreditam eles. Como qualquer experimento emborcado, os primeiros passos demonstram resultados favoráveis. Confiança que chegue para dar e vender, laços afetivos restaurados e uma nova perspetiva de vida. Nada mais que uma experiência científica … assim eles nos avisam de forma a afastarem da possível autodestruição.
A esta altura, enquanto vos escrevo, este filme consagrou-se com o (esperado) Óscar de Melhor Filme Internacional na 93.ª edição dos Prémios da Academia e segue em marcha para um eventual remake americano com produção de Leonardo DiCaprio (os americanos não podem ver nada, é um facto). Isto faz-me questionar quanto à preservação de algumas características do qual saliento nesta, negativamente conotada de, “história de bêbados”. Uma delas é a audácia de posicionar toda esta tragicomédia num universo puramente masculino, sem que isso o reduza à mera misoginia. Pois bem, a dita camaradagem e a própria dissecação dos contornos da masculinidade são enzimas que tornam esta história específica sem nunca perder os seus traços universais.
É um “bromance” sim, como querem chamar, mas é antes disso tudo uma celebração à vida (designação atualmente convertida ao marketing do mesmo) com todas as suas dicotomias, ora cómica, ora dramática, o copo meio-cheio ou simplesmente meio-vazio, à escolha do freguês. Outro elemento que porventura dissipará na transladação yankee é a sua diversificada perspetiva quanto ao álcool, “Mais uma Rodada” manifesta as suas diferentes influências desde a alegre alcoolémia até ao patológico alcoolismo. No final nada se julga, culpabilizar o álcool (que se banalizou na nossa sociedade) nunca foi o propósito Vinterberg, nem sequer comparar-se à enésima variação de “O Farrapo Humano” (Billy Wilder, 1945).
Os moralismos hollywoodescos, que serão campos fáceis para a previsível nova versão, não tomam o seu devido “drink” na companhia destes veteranos aspirantes a “bon vivants”. Martin e comparsas vivem a sua boémia como casualidade da sua existência (bem, já me ia esquecendo com esta conversa toda, tenho que tomar o meu shot … cá vai). Assim, ouve-se nas beiras e estribeiras do porto, dos jovens na frescura e no otimismo dos seus respetivos percursos, embriagando através dos néctares de Baco, chafurdando nas suas tentações e sintomas salteados, os cânticos rompantes de que nada perdura mas que se deve ser aproveitado (desta maneira entra “What a Life” dos “Scarlet Pleasure”). Martin não é mais novo, porém, integra-se neste grupo festivo como um camaleão, encarando tal estado numa passagem, uma renúncia à sua mortalidade. Aliás, parafraseando Jean-Pierre Melville, em “O Acossado” (Jean-Luc Godard, 1960), como objetivo de vida – “ser imortal para depois morrer”.
Pelo que sabemos, a tragédia bateu à porta de Vinterberg a pouco tempo do início da rodagem, automaticamente virando uma possível comédia de “velhotes” que ousam sonhar com uma juventude embebida em martinis, numa superação ao seu luto, uma história pessoal e experiencial (não confundir com experimental) sobre o retomo da vida, à “normalidade” que foi configurando perante as mudanças. Nesta lufa-lufa de confinamentos e desconfinamentos, chegar a nós um filme assim, tão antiquado e igualmente vívido é um quasi-antidoto da melancolia contraída pelo nosso quotidiano.
Aliás, Cinema é também isto – sentimento – até porque é Vida. Então brindemos à Vida … mais um shot!