O mal é claustrofóbico. É o edifício, é a casa, é o vazio que ela traz, porque vazia é ela. O mal é interno. Por isso é um mal viver. Já lá está, já foi feito, borbulha e agride, arranha e permanece. O mal viver é também um mal familiar, o qual, por sua vez, configura o mal viver, o desenha e refaz constantemente. A linha desse mal vem de trás, mantém-se como uma pecha presente, e segue para o futuro: o mal da mãe é o mal da filha, a tristeza rancorosa da neta é o fruto dos rancores entre mãe e avó. Piedade (Anabela Moreira) ressente-se da mãe Sara (Rita Blanco); esta não considera Piedade a mãe composta que deveria ser; a sua neta Salomé (Madalena Almeida) não vê na mãe o amor de que ela se acha merecedora.
A família é cruzamento descruzado, é necessidade de vivência, é dor constante, ressentimentos imediatos ou contidos, é invectivar e magoar, é mal dizer e mal responder, mas é também o que ali está, é dia completo, é parede que dá a parede, sala a sala, corredor a corredor. A família enche, já que o espaço é tão vazio e desprovido – só pontuado pelos hóspedes que vivem mal – não deixa ir a nenhum lugar, prende e obriga a ficar, dele não se quer realmente ir.
No inicio, a mesa de um jantar. Assentamento de encontros desencontrados, de olhares rarefeitos, feições duras, sons que pairam, conversas que circundam os incómodos de regressos não antecipados, um comer destrutivo, mas a junção possível e sem fuga, na mesa que está no meio das outras mesas, a sala é vácua, sobra a vocalização das vocalizações, conversas que atravessam conversas, auralidades que se recortam, que se ouvem ou não, as caras acusam, a voz que magoar (e magoa), mas a mesa faz a relação das relações e delas não se pode fugir. Certo, a família dói. Mas é dela a função da dor, assim se faz, mal por mal, é o mal com que tem que se viver. E nele, ela, a família, mal-vive. Nada se pode fazer. Ela está lá. E ainda que todas elas se pudessem esconder umas das outras, tão depressa se querem encontrar na claustrofobia aberta de quem quer estar com quem quer guerrear.
A família é, por tal, forma estranha de odiar e amar, amar e odiar. Salomé ataca a mãe, ela sabe (acha?) que Piedade não a quer (será?), mas nela se aconchega, deita a cabeça sobre o colo materno, encolhe as pernas, acomoda-se no sofá. É frio? Parece frio. Mas Piedade não a deixa de receber, no calamento que é a sua forma de ser, na impiedade que qualifica o seu modo de estar. Na quietude de uma mãe e de uma filha, no remanso quebrantado pelo som do concurso televisivo, fica a ligação disjunta do que é possível tentar ligar. Pelo silêncio. O mesmo que as aproxima enquanto deslizam pela água da piscina (também vazia, fora do horário de uso pela clientela). Elas são linhas que se cruzam e descruzam novamente (como sempre, no cruzar há a potência do descruzar, e as linhas que se vão marcando são possíveis cruzamentos em descruzamento e descruzamentos que levarão a possíveis cruzares futuros, se tal puder realmente acontecer), são corpos em suspensão de um amor há demasiado tempo suspenso. Dir-se-ia perdido de vez? O amor filial é tão difícil de quantificar e de dizer para todas elas. É mais fácil o apontar do mal feito (outra vez o mal, que não as deixa) do que o dizer do amar e do querer, apesar de todo o mal dito, feito, imaginado, rancorado, suspeitado, restituído e vingado. Tantos males, tantos enganos talvez. Elas que tanto dizem, e pouco realmente falam, atacam e defendem, batem e rebatem, mal leva a mal, e mal viver leva sempre a mais mal viver. E o mal viver pesa mais sobre Piedade. É ela a quem mais tudo dói.
Na sua tristeza e maleita própria, Piedade carrega a mágoa da impermanência de uma felicidade que sabe não lhe ser possível de obter. Casada – e aparentemente bem casada, segundo os testemunhos da sua mãe e irmã Raquel (Clea Almeida) – deixou que o marido se afastasse (um fantasma que sobrevoa as mulheres que dele falam). Mãe de uma filha que lhe é claramente estranha e que lhe causa o estranhado desconforto de um amor materno (o seu) que não consegue vocalizar ou materializar realmente. Mas a mais estranha das estranhezas é que essa mágoa-dor é efeito desse mesmo amor que é claro na exata forma da sua não materialização e demonstração. Alma triste, não conseguível da alegria do dizer, é antes pelo não dito da quietude que mais tudo fica expresso, ou antes, é pelo parco dizer, pela pequena afirmação, pela pouca conversa, enfim, pelo olhar mudo e pelo diminuto verso, que ela comunica o mínimo que urde. Talvez seja ela, também, mal nascida talvez seja ela não daquele mundo, daquela família, daquele prédio, daquele tempo, de tão fechada naquele espaço afinal aberto nas suas portas, mas tão levando a lado nenhum. Por fim, o que ainda não tinha sido de uma vez (ou outras vezes), assim o foi. De mal nascida a bem morrida? De mal vivendo a bem partida? Pôr a cabeça na água, suspender-se de vez, para assim flutuar para sempre. Os objetos ficados são entregas feitas com cuidado e método, apartadas, dispostas geometricamente, carinhosamente: afinal, a demonstração do valor dado aos seus só poderia ser forçosamente dito pela ausência e na ausência?
O grito de Sara, abafado pelo vidro, não ouvido mas dolorosamente sentido, é o descruzar final, o desfasar absoluto, nada ficou bem dito, antes mal dito. Mal. Sempre esse ato, sempre essa palavra, sempre esse estado. Desperta o dia, fica a dor. Vai-se uma, fica a família. Para contar e recordar, álbum também estranho, de fotografia de casamento a liquidez azul, na água ela nadou, na água morreu, das águas de uma mãe se nasceu, nas águas com uma filha se flutuou. Nessas águas de um mal viver, ela se fez como um leve desvanecer.