«Manchester à Beira-Mar» é um drama incomum, por conseguir evitar os clichés que perpassam o género. Não se limita a mostrar os acontecimentos que dão origem a uma marca psicológica numa personagem, mas quer, sobretudo, dar a ver como uma marca reverbera no mundo – de objectos e pessoas – que a envolve. O que vemos não são meros corpos que se movem, mas a afecção que lhes imprime movimento, como se uma força se espraiasse desde dentro da personagem afectada, Lee Chandler (Casey Affleck), e que, a partir do evento que a marca, passasse a comandar todas as suas acções e decisões futuras. Então, em Lee Chandler não vemos, apenas, um homem que tenta lidar com o luto, mas sim a força intensa de um afecto, dentro de uma mente, e o seu extenso reflexo, fora dela.
Lee é um homem solitário que fica responsável pela guarda do seu sobrinho, Patrick (Lucas Hedges). Esta nova tarefa implica que ele se mude para o local onde moram as suas memórias mais devastadoras, que o impedem de se dedicar plenamente ao seu sobrinho, por encontrar aí signos que remetem para a sua mais profunda e inultrapassável dor.
É um processo de sublimação da dor que vemos, a solidificar-se, desde o primeiro aparecimento de Lee, nos seus gestos, numa solidão quase apática que transparece na forma como se relaciona com os outros. É-nos apresentada esta intrigante personagem sobre a qual pouco sabemos, até que nos é dado a conhecer o evento traumático que criou aquela nova subjectividade sombria, e que o realizador pretende fazer passar ao espectador com a máxima intensidade – quase numa pura manipulação emocional! É para esta cena que o filme caminha, num ritmo lento, e ela pode dividir as opiniões na forma como o cineasta a concebeu: de repente somos possuídos por um sentimento de estranheza, com o início do «Adágio em Sol Menor» do compositor Tomaso Albinoni, enquanto vemos uma cena aparentemente banal, passando pela explosão melodramática do evento trágico, até vermos Lee, sentado na esquadra, totalmente devastado – como se até o próprio choro fosse já uma acção impossível -, a relatar para o espectador (e policias) o descuido que deu origem ao acidente.
Pessoalmente, penso que Lonergan se esforça para afectar o espectador, com uma intencionalidade evidente. É importante realçar a forma como ele esculpe as suas imagens, dando-lhes uma luz que brilha nas linhas que delimitam os corpos e os objectos, como se a luz que vemos a bordejar os limites das formas fosse um foco de luz, que explode, num ponto qualquer, escondido por trás das coisas. Aliado a imagens tão belas, o realizador consegue fazer escolhas musicais que não deixam que esta beleza visual escape por nenhum lado, criando uma coesão estética que nada tem de superficial, vaziamente romântica ou exageradamente sentimentalista – embora o possa parecer, numa primeira impressão, esta que facilmente nos arrebata e desestabiliza emocionalmente.
Este é um filme que nos confunde na forma como foi elaborado, pois não pretende focar-se no argumento, tornando vã uma procura nossa por alguma actividade lógica que se desenrole a partir de uma personagem central: activa no espaço, toda-poderosa e muito dialogante. São os blocos visuais e sonoros, esteticamente sublimes, que fazem o filme; mas não o fazem sem a interpretação dos actores, e Casey Affleck consegue, de forma brilhante, imprimir a dinâmica que o filme exige para que esses blocos possam sobressair e resplandecer. Não deixamos de ver uma alma em ruína que luta para sobreviver a uma tragédia familiar que o próprio já assimilou como insuperável; porém, é a Lonergan quem cabe superar essa dor, maior que o mundo, que consome a personagem, não apenas para fazermos uma catarse, que torne suportável a existência, mas para tornar tangíveis as forças, imanentes e eternas, que vêm impregnar o nosso mundo de beleza.
Realização: Kenneth Lonergan
Argumento: Kenneth Lonergan
Elenco: Casey Affleck, Michelle Williams, Kyle Chandler
EUA/2016 – Drama
Sinopse: Lee Chandler (Casey Affleck) é forçado a voltar para casa para cuidar do seu sobrinho, após o seu irmão morrer. Após saber que lhe foi dada a tutela do sobrinho, Lee luta contra a decisão do seu irmão por isso exigir que ele volte para o lugar onde viveu uma tragédia que o marcou profundamente.