Terminou a 31ª edição do Festival de Cinema “Curtas Vila do Conde”, que teve um sabor especial para os vila-condenses. A estreia do documentário “Maquete ‘92”, do realizador Paulo Pinto, foi o gatilho cinemático perfeito para o acontecimento musical perfeito: o regresso, para um concerto, da banda “Turbo Junk I.E.”.
Todos nós temos aquele momento em que algo do passado vem parar ao meio de uma conversa e dizemos: “Nunca vi, mas ouvi falar…”. Tenho várias memórias de ouvir o meu irmão mais velho falar sobre a energia e irreverência da “banda dos irmãos Praça”. O nome “Turbo Junk I.E.” sempre soou na minha cabeça como um momento muito especial da história da cidade onde nasci e cresci; mas que nunca tive a oportunidade de vivenciar. Via sempre como felizardos aqueles que relembravam com nostalgia os concertos que a banda deu por cá, no “Festival da Juventude” ou na “Azenha D. Zameiro” – que, nos anos 90, foram alguns dos espaços do concelho onde o Rock n´Roll borbulhava com vitalidade. Por isso, faço parte de uma geração para quem os “Turbo Junk I.E.” foram sempre uma aura cultural: por um lado, invisível e misteriosa – inúmeras vezes evocada, mas desconhecida; e por outro, uma energia vibrante e concreta – mas que só é possível sentir através da reprodução das músicas.
No seu documentário “Maquete ‘92”, Paulo Pinto conseguiu satisfazer esta curiosidade que permanecia escondia no coração de muitos vileiros; e, certamente, dentro dos demais corações onde ressoam as músicas dos Turbo. O filme, através de várias imagens de arquivo e de entrevistas, vai levantando o véu e iluminando vários momentos marcantes no percurso da banda. As histórias vão sendo contadas, ora no presente, pela voz dos vários elementos e pessoas próximas da banda, ora no passado, recorrendo a vários registos de vídeo, fotografia e áudio a que o realizador teve acesso.
Nas imagens, respira-se um forte sentimento de liberdade e a urgência de criar. A cena cultural vila-condense florescia. Criavam-se vizinhanças entre o Cinema (o nascimento do “Curtas” pelos membros do cineclube da cidade), a Fotografia (de Cesário Alves, amigo da banda, fotógrafo e Director de Fotografia de “Maquete ‘92”), a Música, a Literatura (o escritor Valter Hugo Mãe, ainda jovem, entrevistou a banda e conviveu, de perto, com vários membros), a Filosofia (o intelectual singular que foi Armando Ramalho), a Rádio (Álvaro Costa, que foi um pedagogo do Rock, ao ensinar que experienciar a música através dos meios analógicos era mais do que apenas ouvi-la e descobri-la; era um ritual com um valor próprio e insubstituível). Os “Turbo Junk I.E.” são fruto de uma conjugação feliz, que nasceu do encontro entre as várias musas que habitavam a cidade.
As seis formações diferentes da banda revelam a efervescência dos tempos que se viviam. Por vezes, foram algumas situações relacionadas com drogas, a morte de um dos membros da banda, ou casos de roubo de material. Quando roubaram uma grande parte do material, a banda foi obrigada a adoptar uma nova economia de meios, o que provocou uma significativa transformação no seu estilo: a “Injecção Electrónica” (I.E.) teve de ser trocada por uma “Injecção Acústica”; algo que não lhes afectou em nada a combustão ou a intensidade, apenas tornou o som do motor menos feroz, mas mais cru, primitivo e essencial. A nova situação material da banda exigiu um regresso dos instrumentos às suas próprias caixas de ressonância; e com isso, à própria banda, uma nova forma de tocar e uma nova formação.
Se, para uns, terem visto “Maquete ‘92” e o concerto dos Turbo veio dar uma nova luz a algumas memórias que permaneciam levemente empoeiradas pelo tempo; na alma de outros, as recordações alheias, que permaneciam envoltas em nuvens de mistério, ganharam, finalmente, cor e ritmo. Talvez a função do cinema seja mesmo essa: dar uma nova vida às coisas e às pessoas. Foi isso que “Maquete ‘92” fez duplamente: pelas histórias que foram contadas e pelos registos que contém; e por ter sido o gatilho perfeito para juntar em palco estes últimos cowboys solitários.