O corpo dilacera-se. A carne abre. O sangue solta-se. Os músculos deformam-se. O tom é vermelho. A face de Harper Marlowe (Jessie Buckley) olha, o tempo é de um andamento lento, quase parado, excruciante. O que ela vê é o olhar outro, violento tanto quanto fixo, e um corpo na suspensão de um cair demorado, o apontar e o marcar de uma culpa que James Marlowe (Paapa Essiedu), o que cai, lhe lança. Temporalidade alongada, mas não fugaz. Ele passa, ela vê-o a passar. Ele olha-a. Ela deixa de o olhar. Porque ele sai, o quadro fica vazio. A mente fica vazia.
Corpo dilacerado. Fluidos sangrados. Pois este “Men” é um filme de sangue. Do sangue dos homens que nascem como se fossem um sangue de mulheres. O dilacerar da gravidez, o abrir e estender da vulva não é nele um atributo feminino, mas antes masculino. A dor do dilacero é transferido da mulher para o homem. Misoginia invertida? Transmutação corporal? O doer é também uma dilaceração mental. E essa Harper já a traz mesmo antes da morte que James quer nela fazer culpar. A discussão, o ataque, a disfunção, não surgem como prólogo, são uma memória que Alex Garland só mais tarde configura, resposta-questão que mais clarifica e densifica uma toxicidade mútua entre um homem e uma mulher.
As relações de poder são óbvias: a manipulação é forma de abaixamento. James quer ser amado, mas sufoca e bate. No entanto, o poder inverte-se, pela mesma dor que inflige: pela imaginação e pela construção de um vórtice de uma queda outra, mais voraz, mais profunda, criadora de uma história que só pela sua inaudita formulação quasi-mitológica, funciona como uma catarse curadora e transformadora, um refazer dos papéis, das formas de poder dos corpos e dos géneros, e uma vindicação da sexualidade feminina. Só mesmo por imaginação e vontade de imaginar, pode Harper ver em quase todos os homens que encontra – na sua estadia no campo – a mesma fisionomia facial de Geoffrey (Rory Kinnear), o proprietário que lhe aluga a casa onde ela passa o período de reconforto e recuperação pessoal. O regresso à terra é o retorno ao fundamental e, por tal, o energizar desse espaço imaginário que, por inversão e estranheza, é o domínio do reencontro entre o viver de uma culpa – que poderá ela ter, não ter, tomar ou não tomar – e o enfrentar de um medo perante a força do masculino e o poder físico que ele faz exercer.
A implausibilidade é forma de regulação e combate interno: se Harper vê com normalidade que todos se pareçam com Geoffrey, então é porque é ela que projeta – imagina – em todos os homens a figura do Homem-Poder, o homem que rebaixa, que maltrata, que culpa e maligna a Mulher, fazendo-a impura, porque sanguínea. O medo ao homem, só pode ser imaginativamente combatido – e ao mesmo tempo vivido – pelo arquitetar do mais puro terror, enquanto experiência do ver e estar com essa corporalidade inimiga, quer seja o Homem Nu (Rory Kinnear) ou o Vigário (Rory Kinnear).
Esse medo extremo, enquanto acontecimento e peripécia do inaudito assustador tem, na junção dos sítios onde o temor e o tremer podem acontecer, o espaço de efetivação de um entorno imaginativo-terrorífico em que as ilusões lúcidas – nunca possíveis de serem provadas como sendo reais ou irreais – têm lugar. O passear pelo caminho florestal leva-a ao túnel que ela não atravessa. Mas faz nele ecoar as melodias que a sua voz torna cada vez mais intrincadas e por si mesmas assustadoras nessa sua mistura de tons e frases. Não passar, mas ficar, é o levar-se pelo imaginar do que poderá estar sempre lá, no fim do trilho afastado e do branco ofuscado do outro lado do túnel. O que Harper vê é o que ela quer e ao mesmo tempo não quer ver: a figura que parece masculina, a possibilidade de toda uma violência que já havia sido posta sobre ela. A masculinidade nua que depois lhe invade o jardim representa imaginativamente o corpo oposto a necessariamente a re- dilacerar (o qual havia também já sido dilacerado, caído enquanto homem e generalidade do masculino). E ainda, do natural para o normativo: o local de culto não pagão e masculinizado, onde ela ainda mais grita, no silêncio maior da memória da luta perdida (o corpo masculino morreu dilacerado para culpar o corpo feminino) e em que o representante dos homens (o Vigário) mais não faz do que lançar o opróbrio sobre ela. E daí para a sequência fulcral de todo o filme, a que se passa na casa e que é toda uma equivalência que se faz entre o edifício (a moradia) e o interno (a mente) e onde o fantasmático- corpóreo e o impossível tomam pouso e formas cada vez mais horrendas.
O corpo estranho e implausível é transformável na razão do que ele manifesta e simboliza: Geoffrey está para ser corporalidade indutora e carregadora do medo. A mão que desliza sobre a faca que Harper nela espetou abre-se e dilacera-se de modo a repetir a abertura e o dilacero dos membros de James. Cada iteração dos homens-Geoffrey retém os seus ferimentos e partes dilaceradas. Servem para um fim claro: a da necessária reconstrução de Harper. O Vigário (que poderia ser James e no seu lugar está) agarra o pescoço de Harper com essa mão dupla, deseja-lhe o corpo, põe-se sobre ela, força-se a ela, mas ela repele-o, com a força violenta do assumir da sua corporalidade agora lutadora. De forma para forma até ao corpo confrontativo final: o de James, dilacerado como antes, pedindo a Harper algo tão obtuso como o seu amor. O mesmo que ele dilacerou tanto quanto à sua carne. E que ela já não poderia dar e que já estaria desaparecido mesmo antes de ele se matar pela impossibilidade de um dia o voltar a ter.
Garland mais não mostra e mais não explica. No fim, fica uma Harper sorridente, sentada, um rasto de sangue seguindo até ela. Imaginar o terror como forma de sublimar uma culpa. Materializar o homem como uma forma de o ver continuamente contorcer-se e sangrar também ele. Tê-lo sobre si para também o poder afastar com a força devida. Negar. Ser. Resolver. Esquecer. Sorrir. Catarse pelo sangue. De tudo o mais parece ficar ganho o poder do feminino. O masculino, esse sangrou.