MOTELX e as “Sombras” do cinema como alegoria no terror da banalidade contemporânea

“Sombras” (2025) estreia nos cinemas portugueses no próximo dia 9 de outubro
"Sombras", de Jorge Cramez MOTELX é abstrato "Sombras", de Jorge Cramez MOTELX é abstrato

É no abstrato daquilo que consideramos como concreto que somos surpreendidos com a construção da nova cinematografia, essa que explora e transforma, oferecendo-nos uma outra perspectiva sobre aquilo que pensamos já conhecer.

O traço do cinema de terror compõe-se sobre vários contornos, e não precisa de se materializar sobre a atmosfera em tons rúbeos e elementos de suspensão. O terror pode ser a ansiedade corporizada pelo espectador, que nasce da metáfora para brutalidade de tudo o que nos designa.

Encontrei-me com o MOTELX pela primeira vez este ano, à procura de tudo e de nada em concreto, acolhi, no meu desconhecimento, a nova longa-metragem do cineasta português, Jorge Cramez“Amor Amor” (2017) “Venus Velvet” (2002) e “O Capacete Dourado” (2007).

banner 11 2025 1
Publicidade

“Sombras” (2025) estreia nos cinemas portugueses no próximo dia 9 de outubro, um drama psicológico com “pinceladas” de terror e suspense, que desenha as dinâmicas relacionais de Marta e Jaime, um casal sem filhos que, navegando o seu universo, na aparente tranquila vida de campo, se deparam com uma criança e a “obrigação moral” de a aceitar ao longo de um fim-de-semana.

No constante envolvimento do fado inato ao universo “familiar”, o novo filme de Cramez transforma-se e reinventa-se ao longo de cerca de uma hora e meia. O que inicialmente surge numa inquietude desconfiada, desenrola-se num “crescendo”, figurativa e literalmente, ascendendo até ao culminar da ação.

Poderíamos estar perante um clichê cinematográfico, focado na maternidade, na mulher que se deseja emancipar profissionalmente e na crítica medular à misoginia conservadora do tradicional pensamento familiar… atrevo-me a dizer, que sendo muito mais do que isso, “Sombras” é um lufada de ar fresco na observação crua da monogamia humana.

Muito pouco ousa à simples (de que simples nada tem) reflexão sobre ser pai, ou mãe. Diria que, apesar de surgir como gatilho, a exploração da maternidade/paternidade não será a munição que irá ferir o que já é maligno.

O verdadeiro “terror” é aquele que, enterrado por questões não resolvidas, se materializa numa relação “conjugal” em que o outro se anula a si próprio, fraturando-se para encaixar nas vontades e quereres do outro. A chegada da criança até ao íntimo do casal apenas vai demonstrar aquilo que, no desenvolver da narrativa, se torna mais claro mas que nunca é visualmente reconhecido.

O “monstro” ou criatura que invade o sossego poderá ser, no universo da interpretação (pelo menos da minha), a alegoria perfeita para todos os monstros que, agora desenterrados, começam a ameaçar a “casa” com paredes de vidro. É a assombração dos fantasmas do passado que se vai metastizando na relação até começar a exibir os seus sintomas.

Acompanhando um extraordinário argumento de Rita Benis e uma belíssima interpretação de Victoria Guerra (Marta), Dinis Gomes (Jaime) e Catarina Machado (Beatriz), Jorge Cramez explora o cinema de terror embalado na metáfora das prenunciações de uma relação interpessoal claramente nociva mas manifestamente real.

O realizador consegue desenhar as sombras do que é verdadeiro assustador, através do recurso ao terror como metáfora para a crua realidade.

Esta instrumentalização que espelha a brutalidade do que nos constrói enquanto cidadãos do status quo, não é algo propriamente inovador, mas quando chega até nós “pessoalizada”, e por nós é abraçada, aquilo que é assustador torna-se, efetivamente, angustiante.

Cramez conseguiu.

Conseguiu através da construção dos planos e colocação de câmara que vão afunilando até clímax da ação em close-ups que navegam os momentos de maior tensão do casal, até à arquitetura cenográfica equilibrada entre tons claros e tons mais escuros que, contrastando, pintam a visão instável mas harmoniosa dos momentos de violência relacional e a suposta serenidade de ambos.

Apesar da boa construção do suspense e jumpscare, o verdadeiro terror cinematográfico que Cramez nos oferece está na capacidade sublime de nos entregar todos os detalhes técnicos que cumprem um bom filme de terror e o retrato nu do que no concreto são os nossos terrores quotidianos.

Não sei, talvez esteja a guardar o filme numa visão muito minha, muito pessoal. Se assim for, fico muito contente, encontrar um filme onde pudesse mergulhar o meu desassossego ajudou-me a abraçar o escuro, na conciliação com os meus próprios terrores.