Quando “Happy Hour“(2015) fez a sua aterragem abrupta no mundo ocidental, foi imediatamente evidente que o realizador Ryûsuke Hamaguchi era um grande talento; o que era menos claro seria o quão versáteis e inesperados os filmes que seguiram de Hamaguchi seriam. “Asako I & II” (2018) era um inteligente anti-romance, e este ano vimos não um mas dois diferentes filmes de Hamaguchi: o tríptico feminino que compreende “Wheel of Fortune and Fantasy” e “Drive My Car“, que transforma menos de duas dúzias de páginas de Haruki Murakami numa carta de amor de três horas a Anton Tchekhov.
Hamaguchi é provavelmente o melhor argumentista da sua geração; a sua escrita de personagens e de diálogo é tão forte e a sua trama tão cuidada que é fácil categorizá-lo – de uma forma algo de alguma forma desajeitada – como “literário”. Mas os filmes de Hamaguchi estão também repletos com a emotividade da performance – quase todos os filmes possuem personagens a caminhar em “papéis” claramente definidos, por uma razão ou por outra – e com a claridade visual e economia de um mestre. Tomemos como exemplo, o take prolongado perto do início do primeiro episódio de “Wheel of Fortune and Fantasy“, onde um segundo take prolongado mostra um par de amigas, em que uma fala sobre a noite mágica que acabou de ter com o ex-namorado da amiga, sem que esta se aperceba de quem falam. É a paciência de Hamaguchi comanda a atenção, mas é uma tomada que nunca sugere o cuidado da edição e do posicionamento de câmara durante as cenas da leitura, do workshop e do teatro espalhadas ao longo de “Drive My Car“. O cinema de Hamaguchi mistura o literário, o teatral, e até o balético com o cinemático, e o seu sucesso crescente é a prova de que ainda há espaço para uma juventude criativa e ambiciosa, numa indústria que parece estéril.
Por ocasião da apresentação de “Wheel of Fortune and Fame” e “Drive My Car” no Festival de Cinema de Nova Iorque, eu falei com Hamguchi sobre como os seus métodos de produção mudaram ao longo dos anos e sobre os elos entre os seus novos filmes e os seus trabalhos anteriores menos conhecidos.
Em que ponto do seu processo, se existiu algum, começou a pensar sobre a duração?
Eu, na verdade, parei de pensar nisso. É provavelmente bom para um filme tentar caber em duas horas, mas no fim do dia, quando eu tento desenvolver as personagens de uma forma em que me sinta bem, nem sempre se ajustam a esse enquadramento temporal. Eu apenas tento descobrir o que é bom para mim, porquanto o produtor mo permita.
A duração é secundária em relação aos relacionamentos e à constelação de personagens. São elas que me permitem decidir quanto tempo é necessário. O que comecei a fazer foi simplesmente copiar como tinha feito.
Em”Wheel of Fortune and Fantasy”, juntou três curtas-metragens. Foram considerações sobre factores comerciais que o levaram a decidir juntá-las?
Eu sempre gostei muito de fazer curtas-metragens. Depois de “Happy Hour”, eu filmei “Heaven is Still Far Away” (2016). Fazer curtas permite-me confirmar algumas das coisas que tenho vindo a fazer. É também uma boa preparação para fazer uma longa-metragem.
“Wheel of Fortune and Fantasy” é, na verdade, parte de uma série de sete filmes que eu tenho na cabeça. Mas o problema com as curtas, no Japão pelo menos, é que se torna muito difícil conseguir encontrar forma de lhes dar um lançamento nos cinemas. Quando tive a apresentação de “Asako I & II” em França, eu dei uma entrevista a Mary Stephen, que foi editora do Rohmer, e ao falar com ela eu aprendi sobre a importância das curtas-metragens para Rohmer. Eu simpatizei realmente com as ideias dele, então pensei que poderia copiar a sua aproximação.
O filme de Rohmer “Rendezvous in Paris” (1995) consiste em três curtas. Eu pensei que se seguisse esta estrutura, eu poderia encontrar uma forma de o lançar no Japão. Também foi um incentivo para a equipa e para o elenco saber que o filme teria um lançamento.
É “Heaven Is Still Far Away” um desses sete films? Eu detectei algumas semelhanças entre esse e especialmente o terceito segmento de Wheel, com personagens que dão um salto de fé para acreditarem em algo uns sobre os outros.
“Heaven is Still Far Away” é, na verdade, um projecto completamente diferente, mas quando menciona as semelhanças com o terceiro filme, eu não tenho a certeza como responder. Está correcto, existem similaridades aí, mas eu faço coisas semilares algumas vezes. Existe nisso um impulso para mim em querer redireccionar certas ideias.
Sobre essa nota, “Drive My Car” lembrou-me muito os seus trabalhos anteriores, particularmente “Touching the Skin of Eariness” (2013) e “Intimacies” (2012), especialmente durante as cenas no workshop. Estava consciente sobre colocar coisas dos seus trabalhos pre-Happy Hour?
Sim, até certo ponto. Eu tento refazer coisas que sinto que não tenha conseguido descobrir anteriormente e reaproximo algumas ideias. Estou bastante consciente da repetição de motivos nos meus filmes, e provavelmente, continuarei a trabalhar dessa maneira.
Muitos dos seus primeiros trabalhos foram feitos em colaboração com universidades ou institutos culturais ou surgiram de seminários. O seu método de produção mudou desde então?
Sim, existem mudanças que aconteceram, principalmente porque dentro da indústria comercial o orçamento é muito maior. Eu acho que usamos muitas vezes a expressão “filme independente”, mas ao longo da minha carreira eu nunca fiz filmes em que usasse o meu próprio dinheiro. Os meus filmes são “dependentes” em vez de “independentes”. Eu recebo dinheiro das instituições ou universidades e recebo um orçamento. Mas o que não muda para mim é que trabalho sempre dentro desses orçamentos que me são dados, sejam grandes ou pequenos. Eu penso sobre aquilo que é possível dentro dos limites desse orçamento e tento mesmo não o exceder. Na eventualidade de, por vezes, o exceder, eu falo sempre com o produtor e trabalho dentro daquilo que for mais confortável para ele.
Os seus primeiros filmes parecem muito colaborativos, especialmente com os seus performers. Ainda possui esse método nos seus filmes mais recentes?
Eu penso que não é possível ter um filme onde não exista colaboração com os actores, por isso para mim tem sido uma continuação. Mas o que mudou é que quando estava a fazer documentário ou quando filmei “Happy Hour” – que filmei ao longo de dois anos – eu podia gastar muito tempo a desenvolver relações. O que é diferente para mim, hoje em dia, é que não possuo esse tempo. Quando diz “colaboração”, está a falar acerca do tempo que gasto?
Não apens tempo. Em “Touching the Skin of Eariness”, por exemplo, parece que os performers têm um papel importante em determinar a direcção do filme e improvisar. Estou a pensar, antes, se isso é verdade, mas também o quanto isso mudou em algo como “Drive My Car”. Quanto é planeado e quanto surge durante a produção?
Não é muito frequente que as coisas corram exactamente como planeado. Estou frequentemente a descobrir coisas no processo. Muitas vezes dizemos, “Ok, vamos fazer desta maneira.”. Se olharmos para “Touching the Skin of Eariness”, eu trabalhei com o coreógrafo, Osamu Jareo, e os actores seguiram a coreografia, mas eu diria que foi cerca de 50-50 de improvisação versus coreografia. Tendo em conta “Uncle Vanya”, eu penso que existe mais daquilo que foi planeado. Mas, desde que filmei “Happy Hour”, eu comecei a incorporar este processo de leituras, e nisso, o que vem mais do improviso é o aspecto emocional das leituras. Esse elemento de improvisação através das emoções não mudou.
As leituras são similares às de “Drive My Car”?
Não exatamente iguais. Eu faço leituras em que os actores lêem sem emoção uma e outra vez, mas eu sinto que isso não é preparação suficiente para filmar. Mas eu faço algum trabalho similar.
“Drive My Car” é uma adaptação de um conto de Murakami, mas Tchekhov também é uma grande parte dele. Essas sensibilidades literárias parecem-me muito diferentes. O que os aproxima?
Na história original, “Uncle Vanya” está lá, uma parte muito pequena, mas diz-se que é Kafuku quem está a fazer essa peça. O que fiz foi tornar isso em algo bem mais largo. Eu sinto que Tchekhov e Marakami partilham uma certa universalidade na escolha de palavras. Eles arrancam palavras desde algum lugar muito interior. Eu penso que é por isso que Murakami escolheu Tchekhov para essa história.
Falando sobre relações em “Uncle Vanya”, Kafuku é uma personagem e Vanya é uma personagem, e eu penso que há algo que se reflecte em ambas. Ambas estão em performance, e por vezes, Kafuku cita “Uncle Vanya”. Existe também a relação entre Misaki e Sonya. Misaki está a ouvir as cassetes de “Uncle Vanya” e começa a apredender muito do diálogo. Existe esta ideia de Sonya de se estar preocupada ao achar que não é bonita, e Misaki cita e pensa sobre essas ideias. Então, com tudo isto, estas personagens reflectem-se uma na outra, e eu quis trazer o potencial que existia aí.
A banda sonora de “Drive My Car,” por Eiko Ishibashi é realmente maravilhosa. Como acabou a trabalhar com ela, e sabia que tipo de som queria ou deixou-a improvisar?
Ela foi-me apresentada pelo produtor. Eu ouvi-a e pensei que ela era maravilhosa. O que senti foi este sentimento do “Chicago Sound” – pessoas como o Jim O’Rourke. Mais tarde, ela disse-me que concordaria que o seu trabalho se enquadraria nesse grupo. Eu sempre senti que esta sonoridade era muito adequada como música para filmes, então quando a convidei para se juntar ao projecto, eu estava certo sobre trabalhar com ela.
Eu pensei em Jim O’Rourque, como deve saber, ele actualmente vive no Japão. Eu não sabia, até ver os créditos, que ele tocava um pouco de guitarra na banda sonora. Eu fiquei muito surpreso por ver isso. Mas Ishibashi já estava a fazer música que eu teria tendência a gostar. Não é super emocional; a música dela é bem descontraída no tom. Eu queria muito usar essa caracterísitica. Eu lembro-me de lhe pedir música que não fosse demasiado emocional.
Dito isto, depois da edição estar acabada e de começarmos a colocar a música no filme, eu realmente quis que alguma música criasse uma ponte entre a audiência e o filme. Eu voltei a falar com ela e pedi-lhe se ela podia trazer alguma emoção, e a música que ela compôs depois disso encaixou muito bem no filme.
A coda tem personagens com máscaras e foi filmada durante a quarentena. Como é ter de tomar uma decisão? Considerou outras vias para tentar finalizar o filme ou esperar mais ou alguma outra coisa?
Lembro-me quando estava a tentar decidir se filmaria a cena. Ela foi filmada mesmo no final, a última cena depois de um ano de produção. Tínhamos acabado de editar tudo da cena da performance. Estávamos a tentar decidir se filmaríamos a última cena, mas eu senti que se o filme acabasse com essa cena, seria demasiado “perfeito”, como se tivesse a pedir os aplausos da plateia. Eu não gosto de acabar dessa forma. Eu não gosto dessas cenas. Eu queria ter uma cena diferente para acabar.
As pessoas tentam sempre adivinhar o que essa última coda significa. Tudo o que posso dizer é que o título do filme é a chave.
(Esta entrevista foi realizada por Forrest Cardamenis para o “Kinoscope.org“)