No primeiro plano do filme, o enquadramento sereno de um volume de Proust rodeado de vestígios boémios daquilo que parece ter sido uma noite bem passada remete o espectador a supor que as próximas horas serão de intelectualidade e erudição.
“Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo” é isso, mas o modo sem papas na língua como que se encara a si próprio, característico de Jude, desconstrói um pouco essa ideia e até mesmo a imagem de que o realizador padece no seu país de origem.
A personagem principal, Angela Raducani, interpretada por uma belíssima rebelde chamada Ilinca Manolache, é uma mulher jovem que trabalha na Bucareste do presente como assistente de produção de um empresa de conteúdos para televisão e cinema.
É ela que vai transmitir a maior parte da informação, disparada a 100 km por hora, deambulando entre os destroços de Bucareste, a cidade mártir, levando e trazendo gente, entrevistando quem sofreu acidentes de trabalho, ao mesmo tempo que encarna o seu alter ego Tik Tokiano Bobita.
Ao presente a preto e branco, sobrepõem-se o percurso de uma outra Angela, vinda de um passado a cores, retirada do filme de 1981 “Angela merge mai departe”, de Lucian Bratu. Ali, uma mulher taxista subverte o cinema da repressiva época de Nicolae Ceaușescu tanto pela sua atividade como pelo seu discurso, como também por se relacionar amorosamente com um húngaro, minoria mal vista no país à altura.
Por outro lado, a sociedade machista e xenófoba da época parece ainda permanecer em muitos resquícios do presente da Angela assistente de produção, bem como muitos problemas subsequentes à época da revolução de 1989: corrupção, racismo face aos ciganos romenos, vestígios do regime comunista na cidade, condições de vida quotidiana miseráveis.
Na Bucareste do presente, se os vivos se encontram comprometidos, até os mortos podem vir a ser vítimas de uma sociedade que está muito longe de ser transparente e progressista: a mãe de Angela vê-se obrigada a trasladar os pais depois de o talhão que comprou no cemitério se vir a revelar fazer parte de uma compra de terrenos ilegal.
No meio do seu caos de 16 horas de trabalho diárias, Angela é a voz de uma nova geração de mulheres que quer romper com este passado pantanoso. É uma crítica acérrima do capitalismo selvagem, das empresas que procuram na Roménia baixos custos de produção sem dar nada em retorno, a venda das florestas romenas ao estrangeiro, a substituição do trabalho pela “colaboração”, entre muitos outros temas.
A maior parte do filme é passado com ela, no carro, em viagem, num trânsito infernal onde ainda tem tempo para ser assediada por homens que ostensivamente lhe perguntam onde aprendeu a conduzir. Nada de novo entre as imagens do filme de 1981 e as de agora, portanto, ou, pelo menos, poucas mudanças reais foram concretizadas.
A paisagem de Bucareste, que o espectador vai vendo da janela, assemelha-se à de uma cidade devastada pela guerra: edifícios esventrados, bairros degradados, desordem urbanística, vestígios do passado que teimam em permanecer. Há, pelo meio, sinais de modernização que contrastam acentuadamente com aquele cenário, mas mostram um desejo ténue de avançar.
“Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo” reflete ainda sobejamente sobre a natureza do cinema, sobretudo n0 seu segmento final. Presta homenagem aos seus primórdios como instrumento de publicidade, mostra a sua evolução ao chegar ao século XXI e de como culmina em pessoas como Angela, que com um mero telemóvel chega a milhares de visualizações dos seus vídeos enquanto Bobita.
Bobita é um alter ego masculino, javardo, irónico, mas muito certeiro: é um garanhão que se dá com Andrew Tate e representa o machismo tóxico, repressivo, dominante, dominador. Ao mesmo tempo, Angela cria-o como mecanismo caricatural para expor aquilo que ainda há a mudar nas mentalidades do país.
Radu Jude preenche excessivamente cada recanto do filme com uma crítica mordaz a todos os campos da sociedade, chegando ao cúmulo de ir buscar o realizador alemão Uwe Boll, conhecido por ter desafiado os críticos dos seus filmes a esgrimirem as suas diferenças num ringue de boxe, numa alusão jocosa ao papel da crítica em alguns campos do cinema europeu.
Se todos este elementos são para levar a sério? São e não são e Angela revela muito da atitude que Jude parece nutrir em relação ao papel do cinema e do espectador que o vê: perto do final, aludindo-se ao facto de o seu Bobita poder ser considerado ofensivo pela suas posições em geral, incluindo acerca da Ucrânia, menciona esperar que quem a vê consiga perceber a ironia.
É desta autonomia e respeito por quem o vê que surge a grande liberdade e interesse do cinema de Radu Jude, sem nunca deixar de ser provocador, inteligente, jovial, muito centrado e perspicaz, embora o caos que cria com a roda viva de acontecimentos e informação funcione um pouco como cortina de fumo.
Quando Doris Goethe, interpretada pela sempre impressionante Nina Hoss, visita Bucareste para supervisionar as filmagens do clip enviesado que a sua empresa pagou para conseguir uma confissão de culpa por parte do trabalhador que sofreu o acidente de trabalho, é surpreendida com uma realidade que não compreende.
Como toda a boa personalidade tóxica, apresta-se a culpar os romenos de toda a sua própria corrupção, enraizando-a na permissividade do seu carácter. Angela atesta que os romenos são estúpidos e corruptos, por sua vez numa demonstração de complexo de inferioridade, ao mesmo tempo que se aproximam do imponente palácio do Parlamento de Ceaușescu.
Edifícios enormes surgem como ovnis para colmatar complexos de inferioridade ou demonstrar poder (ou ambos), mas ali tanto Angela como Doris sentem o peso daquele passado ainda omnipresente, agigantado, como uma ameaça. Depois, Doris, a descendente do escritor, prefere focar-se no trabalho presente, não vá ter de se confrontar com outros passados vergonhosos.
Por entre estes momentos de verdadeiro assoberbamento, Radu Jude faz questão de os contrastar com o absurdo de o trabalhador lesado no acidente de trabalho, romeno, ter primeiro nome de poeta, Ovidiu, mas um sobrenome que envergonha toda a gente e tem de ser eliminado das filmagens. Um pouco à semelhança de László Miske, o Gyuri de “Angela merge mai departe”, que por ser húngaro teve de mudar o seu primeiro nome para os créditos do filme.
“Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo” é um dos melhores exemplos de cinema estreado recentemente nas salas portuguesas de como as ideias se podem sobrepor facilmente aos efeitos especiais. Recorrendo a um rio enorme de criatividade e inventividade, Radu Jude vem para acordar o espectador para a dádiva e partilha que é o seu cinema, uma troca vibrante e desperta pronta a questionar até as memórias mais incómodas.