Dez anos depois de “Santiago” (2007), onde fez um retrato pessoal do seu próprio mordomo, João Moreira Salles volta a realizar na primeira pessoa, desta vez recuperando imagens com 50 anos, do Maio de 68, numa viagem ao passado em “No Intenso Agora”.
A partir de filmes amadores que a sua mãe registou como turista, numa viagem à China, durante a Revolução Cultural de Mao Tse Tung, o realizador brasileiro faz um ensaio onde compara imagens do Maio de 68, em Paris, passando pela Primavera de Praga, indo até à morte de um estudante no Brasil, levando a uma revolta estudantil.
João Moreira Salles não filmou nenhuma imagem para este filme. Trabalhou através de imagens de arquivo de filmes como “Morrer aos 30 Anos” (1982) de Romain Goupil e “Os Dias de Maio” (1968) de William Klein. Mas de certa forma ele criou imagens novas, ao pegar nas imagens filmadas por outros e dando-lhes a sua introspecção. O realizador fez um estudo sobre o significado das próprias imagens, tal como aconteceu em “Santiago”.
Salles estuda a efemeridade dos momentos vividos com grande intensidade emocional. Ele interroga-nos como é que aquelas pessoas que participaram naqueles acontecimentos, vividos intensamente, com alegria, exaltação e melancolia, seguiram com as suas vidas depois da paixão ter desaparecido, do desalento, da desilusão. É um filme sobre o viver intensamente, sobre pessoas que levaram a vida de uma forma agitada, absorvente e que depois perderam essa capacidade de serem felizes, intensamente. Os sonhos são efémeros e a felicidade também pode ser. Muitos destes estudantes e trabalhadores que participaram nestas revoltas dos anos 1960 perderam essa capacidade de ser feliz. Um deles, por exemplo, em desespero, desiludido com o resultado dos motins de Maio de 68 e no fundo pela vida que levava, suicidou-se aos 30 anos de idade. Falo de Michel Recanati, um dos líderes dos motins, membro da Juventude Comunista Revolucionária.
Ao longo de duas horas são-nos apresentadas imagens sobre a alegria nas ruas. Em oposição ao governo do general de Gaulle, estudantes e trabalhadores manifestaram-se nas ruas de Paris. Como o próprio narrador diz, que tanta energia podia sugerir a eminência de uma revolução. Mas tal não aconteceu. “Depois da luta viria o mar, o gozo, a festa, a alegria”. Mas não foi isso que aconteceu.
Através destas imagens, Salles mostra-nos como os lideres dos motins de Maio de 68 em Paris eram todos homens brancos. “Maio foi essencialmente masculino”. As mulheres pouco falavam e os negros apareciam quase sempre em segundo plano, nos cantos dos enquadramentos das imagens. “São figurantes”. Ao longo do filme Salles vai intercalando as imagens de arquivo com as imagens amadoras da sua mãe na viagem à China, as únicas imagens a cores. O que curiosamente nos transmite uma ideia de maior alegria, através das cores, do vermelho. Surpreendida com as diferenças culturais da China, a mãe de Salles foi feliz nessa viagem. Tudo a impressionou. Este filme é também uma homenagem à sua mãe.
O realizador lê o que está oculto nas imagens. “Nem sempre sabemos o que estamos a filmar”. Ele desmonta as imagens que são também documentos e interpreta-as. No silêncio das imagens elas falam a uma só voz. A de Salles, que narrou na primeira pessoa, num tom triste e melancólico. O filme é triste, mesmo que seja sobre a felicidade. Uma felicidade desaparecida, difícil de a reencontrar. Podemos falar de saudade, de um Fado. Não é por acaso que o filme termina com um fado, ‘Não Quero Rosas Vermelhas’, da Maria Alice.
Belíssimo filme de Salles. Melancólico, poético e nostálgico. Fundamental para compreendermos aqueles momentos intensos que constituem aquele que é talvez o movimento social mais importante do século XX na Europa. Um filme atual sobre o poder da imagem, que nos questiona constantemente sobre as várias leituras que estas podem ter; sobre como viver intensamente e sobre aqueles homens e mulheres que lutaram apaixonadamente. É um filme que vive no intenso agora.
Realização: João Moreira Salles
Argumento: João Moreira Salles
Elenco:
Brasil – 2016
Documentário
Sinopse: Feito a partir da descoberta das cenas que uma turista – a mãe do realizador – filmou na China em 1966, durante o início da Revolução Cultural, No intenso agora trata da natureza efémera dos momentos de grande intensidade emocional. Às cenas da China, somam-se imagens de arquivo dos eventos de 1968 na França, na Checoslováquia e, em menor extensão, no Brasil. Na tradição do filme-ensaio, o documentário interroga como as pessoas que participaram daqueles acontecimentos – vividos com alegria, encantamento, convicção generosa, medo, deceção, desalento – seguiram adiante depois do arrefecimento das paixões.