O corpo estranho. Maleável. Insuspeição tecnológica que se torna implausibilidade orgânica. OVNI feito animal imperceptível. Dos céus para o sangue, do vermelho para a imagem. A imagem impossível, fugidia e que não se permite ao registo, é o sonho maior do fazedor de cinema (enquanto forma particular do fazedor de imagens). É isso mesmo que Antlers Holst (Michael Wincott) afirma ser o seu desígnio e o seu mais alto desejo: obter a imagem que nunca antes foi capturada, a que nunca ficou cristalizada num suporte que a prenda para sempre.
O impulso do registo é igualmente o ansiar pelo fantástico, pelo que ultrapassa a mundanidade do simplesmente olhado. Pois foi contra o fugaz do movimento evanescente que o cinema foi criado. Para ser como o olho, mas para ser ainda mais, um olho-plano, assentador das impressões e incrustador das coisas-imagem. Porque afinal, o fito inicial do cinema era o de ser registo- memória das coisas vistas e encontradas e dos factos visuais do mundo, os possíveis e os impossíveis, os acreditáveis e os inacreditáveis, os normais e os paranormais, os reais e os fantásticos, os naturais e os sobrenaturais. Por isso, o primeiro cinema foi documental. O seu primeiro corpo estranho foi a ficção. E ela trouxe consigo a ânsia pela imagem impossível. Impossível porque não filmável, impossível porque só imaginado-refeita. Aquela e aquelas que os fazedores de cinema perseguem há mais de 130 anos, a qual e as quais, na falta da sua procurada e total plausibilidade documental, são feitas pelo truque e pelos efeitos óticos e visuais.
Daí que a política de Jordan Peele, no que a este “Nope” toca, seja a de tomar o espetáculo do cinema (das imagens) pelo seu valor intrínseco: o da espetacularidade mesma de um meio com 13 décadas (e a contar…), a falar de si mesmo através da sua construção enquanto o pináculo desse modo- espetáculo: o blockbuster de verão. Comentário mais cáustico – e ao mesmo tempo, mais enamorado – acerca do grande cinema popular contemporâneo não se pode ter do que fazer um filme acerca de como um grupo de personagens tenta registar e documentar algo impossível de acreditar (e captar) com o fim de o mostrar publicamente e com isso ganhar dinheiro (Lumiére, afinal?…). O que Jordan Peele nos traz é uma reflexão política do que é o cinema, nas suas tensões mais importantes: é possível registar o real tanto quanto o impossível? Pode o truque e a ilusão substituir a captura real desse mesmo impossível? Podemos, enfim, acreditar no que vemos – olho no olho – ou antes crer no que vemos plasmado e feito (produzido) para o nosso deleite no impossível – olho no ecrã – a ficção que nos engana e satisfaz, que nos assusta para depois nos libertar? Não se duvide que este filme é sobre o Cinema, a sua História (de Muybridge ao cinema digital e de volta à necessidade da câmara completamente analógica e mecânica) e o seu fazer como evento espetacular de ficção.
Olhemos então para ele. Torcedor dos géneros que é, Jordan Peele introduz-nos rapidamente ao que parece ser um filme do “paranormal” a prometer o terrorífico, para logo nos transportar para um filme “sci-fi” de OVNIS e, por fim, nos encaminhar para o filme de terror e sangue (muito sangue) que nos prometeu no inicio. O corpo estranho referido acima é o primeiro indício (assobio arrepiante) do que se espera vir a ser a proverbial “nave extraterrestre”, para ser depois, inesperadamente, um ser orgânico, um animal incompreensível e devorador de corpos – e cuspidor dos seus fluidos e coisas materiais – e que será o objeto da imagem impossível e ultra-fantástica que OJ Haywood (Daniel Kaluya), Em Haywood (Keke Palmer), Angel Torres (Brandon Perea) e Antlers Holst tentam registar.
Balanceando o seu filme entre o fantástico puro, a ficção científica e o terror, Jordan Peele assume o propósito de pelo menos questionar o que faz – hoje em dia – o blockbuster ser o que é: um espetáculo ou a imagem desse espetáculo? O desfilar dos seus efeitos (digitais) ou o marcar do seu efeito fílmico? A sua força de objeto comercial ou a sua força de objeto dramático? Acredite-se – mais ou menos – numa das respostas possíveis, não se aceite nenhuma ou até as duas como valores equilibradores da luta constante entre a técnica e a estética do e no cinema, chega-se ao fim do filme com a percepção de o jogo eterno da construção ficcional é – e sempre foi e sempre será – um que trabalha as expectativas e os anseios do olho que é o espectador. Seja o medo, as imagens recessivo-memoriais que as personagens não explicam e que servem para sustentar as políticas temáticas que comentam dentro do comentário maior – o apagamento das contribuições dos black filmmakers na evolução do meio, a dignidade negada aos animais – seja o usar desses mesmos efeitos digitais que parecem negar a premissa inicial – “que não se faça o típico blockbuster repleto de efeitos mas sem nenhuma substância temática ou qualquer desenvolvimento de personagens” – o que este filme indica sobre si mesmo é que é possível fazer-se um grande filme de verão, ao mesmo tempo de terror e de ficção científica, com uma sofisticação visual – filmado em película, quer no amplo IMAX, quer em 65 mm – capaz de enquadrar um meta-filme e um conjunto de comentários sociais contemporâneos.
Por fim, “Jean Jacket” é capturada, ou melhor, registada. Num suporte fotográfico, imagem após imagem, num dispositivo plena e gloriosamente mecânico-analógico. Foi feita imagem possível. A outra, a imagem impossível, será sempre a do cinema olhar-se a si mesmo, um espelho com demasiadas e profundas reflexões dentro de reflexões. Essa é, pois, a beleza da sua natureza medial: será sempre tão real quanto ilusória. Por isso, se faz ficção de si mesmo.