Este título é uma das frases finais reveladas por António Macedo e que, inteligentemente, João Monteiro relega para o final do seu brilhante documentário, sobre o primeiro realizador português a estar presente com um dos seus filmes na Selecção Oficial de Cannes, como uma máxima e súmula de um ideal artístico e iconoclasta do prolífico cineasta.
Parafraseando um dos estilos de Italo Calvino, há os filmes que ainda não foram realizados, mas que não são necessários realizar, os filmes já realizados e que nunca o deveriam ter sido e entre muitas outras categorias, há os filmes que se espera que se realizem, mas que ainda não sabemos que são necessários realizar. João Monteiro sabia que era preciso realizar este e em muito boa hora o fez, pois é uma obra seminal para o conhecimento do António de Macedo, para um vislumbre da História do Cinema Português e para a entrada nos meandros pessoais da feitura de cinema em Portugal desde os anos 60.
Trata-se de um documentário que de uma forma, extremamente importante, reúne depoimentos de personalidades essenciais do cinema português, os quais infelizmente já não se encontram entre nós, para uma putativa explicação de uma falta de reconhecimento de António de Macedo como um dos cineastas que inaugura o Novo Cinema Português. De uma forma franca e aberta, as próprias personalidades que fomentaram esse cinema, explicam a ostracização deste realizador e tentativa de limpeza histórica do seu nome, quer por discordância criativa, quer por esboroamento de relações pessoais e por ataques violentos nos média, culminando num boicote deliberado por parte do Instituto Português do Cinema em financiar os seus projetos.
A redenção deste objeto fílmico não está na assunção de responsabilidades nesse processo de obliteração, mas na possibilidade de voltarmos a ver alguns dos filmes mais importantes de António de Macedo e que, me parece ser urgente realizar uma retrospetiva do seu cinema, porque há um conjunto de efeitos, ideias e tentativas de fazer um outro cinema em Portugal que é relevante tornar acessível às novas gerações de público e de cineastas portugueses. Não para a instituição de uma doutrina, mas como abertura de rumos possíveis (e já trilhados), para que se possa continuar a desbravar caminhos abertos pelo cineasta falecido este ano. Há efeitos especiais em Emissários de Khalôm reminiscentes de Kubrick, há estranhezas deliciosas n’O Princípio da Sabedoria e há que redescobrir a experimentação vanguardista nas suas primeiras curtas Verão Coincidente e Nicotiniana.
Para além do prazer de descobrir este cineasta, João Monteiro estabelece uma estrutura documental que parece fazer acompanhar a história de Macedo com uma forma de se ser Português. A ostracização de alguns seus colegas não é diferente da violenta reação da instituição católica portuguesa ao seu filme As Horas de Maria, nem a censura se enterrou com o 25 de Abril, continuando muito depois, demonstrando que a moral conservadora portuguesa é mais difícil de derrubar que um regime ditatorial.
Este documentário é valioso por muitas e boas razões, por ser uma excelente experiência cinematográfica, por ser essencial enquanto documento histórico, por ser profundamente revelador de um cinema relegado para as prateleiras do arquivo do cinema Português e, pessoalmente, e perdoem-me a inconfidência, por me permitir a efabulação pueril de imaginar como seria hoje o panorama do Cinema Português se Sete Balas Para Selma tivesse sido um êxito de bilheteira.
Realização: João Monteiro
Argumento: João Monteiro
Elenco: Lauro António, Leonor Areal, Eugénia Bettencourt
Portugal/2017 – Documentário
Sinopse: Quem se lembra de António de Macedo? Um dos cineastas mais prolíficos que ajudou a fundar o movimento do “Novo Cinema Português” com o seu filme “Domingo à Tarde”. A ousadia estética de filmar “A Promessa”, baseado na obra de Bernardo Santareno, como um western juntamente com o sucesso junto do público provocaria uma clivagem irreversível junto da crítica. Interessado em explorar as possibilidades tecnológicas do meio cinematográfico e em desenvolver um cinema de cariz fantástico, a sua obra é difícil de classificar. Lutou arduamente contra os cortes que a censura lhe impôs, antes e depois do 25 de abril, ou com a Igreja Católica que tentou impedir a estreia de “As Horas de Maria”, o que o tornaria no “blasfemo” filme português mais polémico de sempre. Experimentaria ainda a alegoria esotérica em “O Princípio da Sabedoria”, o sobrenatural em “Os Abismos da Meia-Noite” e a ficção-científica em “Os Emissários de Khalôm”, recebidos sempre com entusiasmo pelo público mas com desprezo pela crítica. Desistiria de filmar nos anos 90, após sucessivas recusas de subsídios estatais. Esta é uma das histórias do cinema português que faltava contar.