O corpo é que deseja, chama e convulsiona-se, treme e contorce-se, parte-se, veias em quase explosão, ardor que não é dor, mas sim ânsia, ânsia de um corpo furado e sugado, corpo exaurido de fluidos que são a expressão do seu desejar mais íntimo, recôndito e não-reprimido, o de ser corpo em desejo, corpo em sangue, corpo de sangue.
O horror não se chama. Deixa-se afastado, para que fique na sua escuridão e de lá não venha. Mas Ellen Hutter (Lilly Rose-Depp) clama por ele, quer que ele a ela chegue, que a tome, corpo de torção e de arqueio, carga e agarro invisível, violência como prazer, chamamento que não devia ter sido feito, mas que feito trará as trevas, a mortandade, o mal, e uma ligação que não pode ser compreendido, porque só liga aqueles que não pode ligar, porque é mais forte do que o próprio tempo, e que nele se faz o escuro que atravessa a lenda e as estórias que escondem os medos da ordem patriarcal: o medo à mulher que é e quer ser ela própria, no desejo de se ser corpo-desejo e que deseja, que grita e assusta, que se corporiza e se faz forma e ato sexual e sexualizado, ela que pode assim, tida de si mesma, ser ordenadora da sua própria forma e destino. A doença a que a acometem é mental, é de nervos, pois ela não pode ser mais do que isso, pois então seria uma igual em posição de se poder assumir como mais e melhor do que o homem. Isso não lhe pode ser possibilitado, ela não pode ser senhora do seu próprio desejo, do seu próprio querer ser corpo com outro corpo, corpo que avança, corpo que é. Mas ela é corpo, e ela chama, ela sente e deseja, ela é corpo-em-prazer-de-si.
Mas o horror está lá, na terra amaldiçoada, ao longe. Escuro como a luz que nela não penetra, escuro como o mal que o corporiza, sombra que não se vê, desenho difuso, mão oblíqua e que tudo cobre, e que sobre tudo avança. A terra é assim a lenda da criatura inominável, ela que tem nome, mas que só se diz com as palavras do medo escondido, quase não ditas, mal balbuciadas, mas ainda assim, como aviso do dantesco, do perigoso, do horroroso e dos descuidados que, avisados estão, amedrontados e sabedores do mal a que se encaminham, não se folgam a voltar atrás, ainda sabendo que o têm que fazer, porque são peões de outras vontades, bondades a caírem nas maldades das quais não poderão fugir. Thomas Hutter (Nicholas Hoult) é empurrado para essa terra escura e da maldição, porque ama. Ama Ellen e por ela fará o que for preciso, para lhe proporcionar sustento e vida confortável, o seu “lugar na firma ficará assegurado” se assim for ao mais obscuro dos lugares, ao mal encarnado na própria terra e céu que mais não são do que o corpo-mal que obscurecem e permitem que a não-luz tome a forma vampiresca e esquelética que fura, suga e esvazia. A mesa é lugar de contrato, o tremeluzir é engano, o corpo está aqui e agora ali, o medo assoma, o ânimo fica partido, não fugirá Hutter, que ele não se consegue levantar, preso está, o que dali se sai é só o gemido-medo, o respiro–ânsia, o terror-suor, o velamento súbito, o negrume total.
A encenação de um horror: o maligno encanto de um sono negro, sonho maldito ou vigília estranha, acordado ou em pesadelo, o labirinto é escuro quarto, súbito despertar, a câmara que se cola ao movimento de levanto, peito com quatro furos, sangue coagulado, boca que ali esteve, porta, janela de luz queimanda, feixes no azul-cinzento, corredor que não se conhece, Hutter corre, sua, geme e sobre-respira, portas que não abrem, cantos que são paredes, a câmara prossegue, movimento horizontal, saída que mais não é do que fechamento, chão de detritos, altos muros que se colam, a câmara arresta-se, mais ele corre, portão ao fundo, mas que não abre, o exangue ainda consegue correr e voltar, a câmara espera, panorâmica que o encaminha, tanto quanto ele a faz virar, porta outra, outro fechamento, de fora para dentro, que a não abra, mas a ela foi chamado, é necessário que a force, o interior toma o lugar, ecrã-câmara novo, do fora-dentro para o dentro-do-mal, aberta está, recua ela, a câmara que agora o chama, verticalidade que desce as escadas, e ele que a segue, escorrega mas prossegue, a câmara vira, segue já sem ele, antecipa-se, a cripta está inerte, ao fundo, obscurecido túmulo, leito de pedra, luz ténue sobre ele caída, feixe-névoa, espaço-terror que não se deveria visitar, mas perante ele se põe Hutter, envolto em escuridão, ainda mais sobre-respirante, recuar deveria, fugir, mas para onde, avança, recua a câmara e corta para o seu próprio avanço, olhar que ela é, o dele, e assim se mantêm, câmara e Hutter, linha mútua que já não pode voltar atrás, ele não pára, e ela sobrepõe-se ao túmulo, pequena curvatura desenhada, desenhos e símbolos, pedra com estrela, paragem, abre-o, Orlok (Bill Skarsgard) dorme na terra, nu magro de um esqueleto a irromper, rato ao lado, susto perante o horrendo, recuo, assomo, picareta,
Hutter não deixará de tentar o golpe de morte que ainda não sabe ser impossível, despertar de Orlok, força maior e levantamento, corpo cimeiro, a câmara recua, a fuga de Hutter, lobos atrás, a porta que não deveria ter sido aberta, fecha-se, meia-face de Orlok, a imagem de Ellen já na sua mão, panorâmica, a mão que tudo cobre, esqueleto ela também, unhas-do-mal, voz gutural e grave que chama. Ao longe, sonâmbula do desejo, mãos em transe, da esquerda em direção da direita que a convoca, Ellen caminha, vira-se, desejo-em-transe também. Sombra-Orlok avança agora sobre Hutter, a mão-sombra que o hipnotiza e o faz abrir a porta do quarto, a Silhueta-Orlok ao fundo, o seu grunhir, avanço sobre Hutter, à janela gótica e lunar posto. Ellen caminha na rua, braços a abrir. Orlok avança, mão a chegar, Hutter deitado na cama, sobre-respirante, a Mão-Orlok assoma, movimento à frente, câmara-e-mão, olhar de Hutter: Orlok torna-se Ellen nua com mesma mão em sua direção, sangue a sair da sua boca, Orlok morde-lhe o peito, suga-lhe o sangue, os dois levitam, prazer-do-exangue do mordido Hutter, revirar dos olhos. Ellen, olhos abertos, sangue da boca aberta, cai no desfoque da rua empedrada. Vampiro, Orlok bebe o sangue do peito de Hutter, golfadas que o enchem e esvaziam o bebido. Hutter acorda, càmara-em-zénite, os lobos entram pela porta, ele foge, janela aberta, parapeito, lançamento-queda para as águas do rio revolto abaixo…o conhecer o mal é assim função de uma câmara-hipnose, movimento corporal-maquínico que avança e recua num espaço-desespero, re-encenação do clássico “Nosferatu” de Murnau (1922), mas que tem, no seu azul-cinzento-do-horror contemporâneo e criador de um mal recordado feito novo – para os nossos tempos – na forma de um terror rejuvenescido na sua re-antiguidade, filmado numa mesma lentidão e num mesmo dar-se à sombra, ela que é a grande sugestão do mal dessa força vampiresca que procura o amor e a luxúria de um sangramento do corpo que quer só para si: o de Ellen, ela que o chamou e a quem ele nunca deixará de tentar chegar.
Da terra maldita, e nela sempre deitado e energizado, Orlok, sombra que é corpo e corpo que é sombra, leva consigo o mal e a peste, pelo mar e num barco também maldito, e que espalha consequentemente pela cidade de Wisburg – os ratos como veículos dessa pestilência mortal – comunidade insuspeita e não sabedora de estar por ele sitiada e por ele condenada a ser uma outra terra estéril, de doença e cadáveres feita. Entre quem não acredita que o mal exista sob a forma de um vampiro, tal como Friedrich Harding (Aaron Taylor-Johnson) e aqueles que, como o Professor Albin Eberhart von Franz (Willem Dafoe), sabem que a sua existência é uma verdade escrita em livros esquecidos de um domínio oculto que nunca deve ser menosprezado, fica clara a luta entre o paganismo e a racionalidade, e entre a crença no sobrenatural e a ciência (a querer ser) moderna, vincando assim a linha que separa, para sempre, os tempos em que o para-além-do-natural ainda era uma forma de ver o mundo que sustentava a incerteza do humano perante o desconhecido e que assim lhe faria necessitada a religião e o anseio da proteção de um divino que lhe fosse sempre salvador,
em troca do devido temor e devida devoção. Os símbolos de uma salvação cristã (ainda que assumindo as práticas pagãs que absorveu e manteve latentes, por substituição) tiveram neste tempo – o da história deste “Nosferatu” – uma última assunção de um papel que lhe ficaria vedado, em função da mais racional explicação psicológica dos problemas do corpo, da sexualidade e da mente. Eggers faz regressar esse temor, o do mal que não se esconde, e dos conjuros e dos exorcismos que o combatem, que ambos escondidos parecendo, nunca desaparecidos estão realmente. Esse temor do horror é sempre atualizado pela forma catártica do filme de terror contemporâneo, caucionante e avisador: os velhos meios, os dos tempos idos, têm a validade de sempre, por sua vez, não só assegurarem o seu bom resultado – matar as formas do mal – mas ainda fazerem descansar aqueles que acreditam só no científico e no racional: o que não se pode explicar, mas que possa resultar, como o uso de orações exorcistas ou cantilenas pagãs, ficará para sempre visto como a forma (im)possível de resolver (ainda que resolvendo) o que nunca a ciência poderia sequer compreender, e portanto, seguramente sempre ficado no domínio do oculto a recorrer em situações de extrema necessidade. E o que o livro lido por von Franz diz é exatamente isso: um poema pagão que determina que só o corpo dado (desejado e desejante) de Ellen poderá ser a forma de derrotar o Nosferatu que é Orlok.
No fim, são os corpos em desejo que se ligam, o esquelético de Orlok e o jovem de Ellen. Deseja ele, insaciável, sugando o sangue, deseja ela, liberta como mulher, escolhendo o que fazer do seu corpo, assumindo-o, sacrificando a sua vida – sangue é vida, não se esqueça – de modo a deixá-lo continuado e franzido no ato de possuí-la. O que nunca ele poderia parar – a insaciabilidade – é assim a forma de o matar: o tempo de exaurir Ellen do seu sangue é o mesmo que demora a luz solar a surgir e a transformá-lo num esqueleto de carne ressequida. Ellen sobrevive ainda alguns momentos, tendo cumprido o que teve a ousadia de ser: um corpo em desejo, um corpo do (seu) sangue.