O deserto de Atacama situa-se a 3000 metros de altitude, na zona norte do Chile. Tem cerca de 1000 quilómetros de extensão e é considerado o deserto mais alto e seco do mundo, pois raramente chove. Em função destas condições, e por ser um local isolado, astrónomos de todo o mundo reúnem-se naquele deserto, debaixo de um céu extremamente límpido, zona perfeita para procurarem, no céu e nas estrelas, respostas o passado.
Em terra, há também quem procure respostas a um mistério de um passado (bem mais) recente: os corpos daqueles que foram presos em campos de concentração, opositores à ditadura de Pinochet. Eram enviados para o deserto de Atacama, enclausurados nas casas dos antigos mineiros que trabalhavam naquela zona árida. Estima-se que 60.000 pessoas tenham sido torturadas nesse período, 200.000 viram-se obrigadas ao exílio e 3.000 desapareceram. Um grupo de mulheres, que ainda não perdeu a esperança de lutar pela memória dos seus entes queridos, continua a busca por eles no enorme deserto. Reviram pedras e mais pedras naquele mar de areia, à procura de respostas. Encontram fragmentos de ossos, pés, partes de corpos, muitos deles por identificar, ainda hoje.
Há duas linhas narrativas que se cruzam: a procura de respostas no espaço, acerca da origem do Homem, e a procura de respostas em Terra, relativamente ao período ditatorial no Chile. Ao mesmo tempo, procuram-se corpos celestiais e procuram-se corpos humanos. O documentário Nostalgia da Luz (2010) poderia ter sido feito exclusivamente em torno dos desaparecimentos, pois é um tema suficientemente forte para prender a atenção do espectador, para o comover e fazer refletir. Contudo, a escolha de um contraponto, como a astronomia, parece-me carregar um simbolismo que torna o filme muito mais rico: o facto de estarmos dispostos a olhar para o céu, de modo a evitar as atrocidades que se cometem no solo, ao nível do nosso olhar.
Há um enorme investimento em telescópios, satélites e todo o tipo de aparelhos, de modo a estudar o Big Bang e outros eventos que ocorreram há milhões e milhões de anos. Contudo, parece não haver investimento, nem sequer preocupação, por parte de quem o pode fazer (quer o investimento, quer preocupar-se), no que toca à busca pelas pessoas desaparecidas. O passado recente é enterrado, do mesmo modo que as vítimas de crimes horríveis, mascarados de decisões politicamente necessárias, o foram. Também o passado acaba por sê-lo. Os eventos situados no longínquo tentam-se descobrir, apesar de ser muito, muito mais difícil de o fazer, e dos recursos para tal serem extremamente maiores e mais caros.
Durante o documentário, há um astrónomo que diz que todos os eventos acontecem no passado, devido ao tempo que a luz demora a chegar até nós – ainda que seja uma fracção muito diminuta de tempo, encontramo-nos a viver no passado. No entanto, o que é o passado, se não aqueles eventos de que nos recordamos (e muitas vezes sem total certeza do que aconteceu? Volta e meia a memória falha-nos). A ciência é vista como exacta e objectiva, contudo, está em constante evolução, face a novas descobertas que vão surgindo. Quem nos garante que daqui a 100, 50, ou até 25 anos, aquilo em que hoje acreditamos não será considerado estupidez? Como se pode então acreditar em algo que ocorreu há milhões e milhões de anos, financiar todos esses estudos e invenções tecnológicas, mas não ter a capacidade de ajudar as mulheres que continuam à procura dos seus familiares, durante décadas, sem qualquer resposta? Não é que esteja contra a ciência e a tecnologia, pelo contrário. É inegável o contributo que as inovações nestas áreas trouxeram para a humanidade, basta ter em conta os avanços da medicina e o consequente aumento da esperança média de vida, e a qualidade de que dispomos para a viver. Contudo, é-me difícil compreender que se faça de tudo para perceber e estudar o passado longínquo, e nada por perceber e explicar o que aconteceu a pessoas que podiam ainda hoje estar vivas.
Talvez seja uma visão pessimista e muito céptica. No entanto, acho legítimo questionar a veracidade da História, de todos os relatos que foram sido deixados ao longo dos tempos, em épocas onde a esmagadora maioria da população não sabia ler nem escrever, estando apenas um certo número de indivíduos capacitados para nos transmitir a sua visão do que aconteceu naquela época particular em que vivia. A educação, a informação e a palavra sempre foram (e serão) as armas mais poderosas na luta contra a injustiça. E hoje, com o avanço da tecnologia, a obra cinematográfica auxilia nesta luta, tal como toda a arte acaba por fazer. É isto que fica para a história, mesmo que a tentem enterrar. Resta-nos levar as nossas vidas com a maior veracidade possível, em todos os aspectos, para que o mundo se torne um lugar melhor, e para que, se um dia as gerações futuras estudarem o nosso tempo, possam sentir orgulho daquilo que fizemos.
Patricio Guzmán analisa um período difícil da história do Chile, mas ao usar a astronomia, consegue tornar esta obra mais leve – a escolha do realizador em não “dissecar” um indivíduo em específico, ou uma família, mas sim abordar o tema na sua generalidade, com espaço para o espectador respirar, bem como reflexões dos próprios cientistas sobre o que sucedeu no mesmo deserto em que exercem o seu ofício, dá uma sensação diferente a este filme, uma aura mais poética que formal. Não é um documentário no sentido tradicional, mas sim uma obra mais ligada aos sentidos, que convida à reflexão e nos prende à sua estrutura e às belíssimas imagens captadas pela câmara. Nostalgia da Luz acaba por não oferecer vasta informação sobre o período ditatorial chileno, mas o seu objectivo não é esse – é sim convidar o espectador a uma reflexão sobre questões mais abrangentes, que não dizem respeito apenas aqueles afectados por esses acontecimentos, mas que dizem respeito a todos nós.