Chegou um candidato importante à seleção oficial competitiva do festival de San Sebastián. Por mérito próprio, o rigoroso e pertinente “Nuremberg”, de James Vanderbilt, candidata se não só aos mais altos prémios do festival e fica na calha para os Óscares. E não só pelas tremendas prestações de Rami Malek, Russell Crowe e Michael Shannon.
Nos 80 anos do final da 2ª Guerra Mundial, do Julgamento de Nuremberga e da Carta das Nações Unidas, o filme de James Vanderbilt surge como uma caução de inevitável dimensão clássica, fazendo regressar ao banco dos réus as mais altas patentes remanescentes dos crimes nazis no final da 2ª Guerra Mundial, num momento que encapsula igualmente o presente avassalador em que vivemos.
“Nuremberg” legitima-se como um dos filmes do ano. Seja desde logo pelo rigor dos diálogos, pela bela leitura de um cinema sereno, em tom clássico, mas que nunca resvala para o lugar comum tão frequente em filmes com esta orientação. Seja como for, é ainda o rigor da mise-en-scène e as prestações rigorosas de um amplo leque de atores que conferem a “Nuremberg” a dimensão de clássico instantâneo.
Curiosamente, a base do projeto encontra-se na leitura do brevíssimo livro de Jack El-Hai, «O Nazi e o psiquiatra», que Vanderbilt leu há 13 anos, como o cineasta explicou em San Sebastián (portanto em 2012, curiosamente, no ano da reeleição de Barack Obama), desde logo, pela forma como expõe, como nunca se viu, o lado psicológico do regime nazi.
Esse foi o espaço para estabelecer um fascinante jogo de xadrez intelectual: de um lado, o astuto manipulador e carismático Hermann Göring, comandante da Luftwaffe e segundo em comando do Reich, interpretado com robustez por um impecável Russell Crowe; do outro, o psiquiatra, aspirante a ilusionista (Rami Malek), encarregado de monitorizar a saúde mental dos acusados e evitar o seu suicídio. Ambos já vencedores de um Óscar, entregam-se a uma química de magia e psicologia que, por certo, não ficará alheada às nomeações aos Óscares.
Se é verdade que James Vanderbilt será sobretudo reconhecido (e recomendado) pelo seu trabalho como argumentista, em particular em “Zodiac”, de David Fincher, onde o tema central é a investigação de um assassino em série, também a sua única realização — “Truth” /”Verdade” — merece destaque.
Trata-se de um projeto, precisamente com dez anos, em que o recentemente falecido Robert Redford assume o papel do jornalista de investigação política Dan Rather, pivô da CBS News, investigando os interrogatórios e os excessos cometidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque.
Em duas horas e meia, Vanderbilt tricota uma narrativa que digere toda a densidade da informação gerada no pós-guerra. E tem no duelo, plenamente conseguido, entre Malek e Crowe, um espaço de destaque no cinema. Desde logo, na forma como articula as diversas sessões de terapia (segundo Kelley, milhares de horas plasmadas no livro «22 Cells in Nuremberg», publicado dois anos após os julgamentos, onde é debatida a psicologia nazi e os efeitos que poderia ter no futuro).
Ainda decisiva para a robustez do filme é a presença do procurador-geral Robert H. Jackson, assegurada por um robusto Michael Shannon. E sobretudo quando encosta Göring à parede e o leva a proferir a frase em que justifica o seguimento de um lunático como Hitler: Ele fez-nos sentir, de novo, alemães. Sim, o eco nos dias de hoje é tremendo!
Vanderbilt recordou ainda que Russell Crowe também foi uma das razões para avançar: Enviei-lhe o guião há oito anos e ele aceitou logo. Sem condições. Acrescentou até que o ator neozelandês pretendia fazer a versão humana de Hermann Göring. E, para isso, investiu-se completamente. Aprendeu alemão e viajou muito pela Alemanha. Ele não precisa de fazer essa pesquisa, acrescentou, o que me atraiu foi o psiquiatra que tentou perceber qual a natureza do mal. Foi o que me cativou. Foi relevante na altura e é relevante hoje.
E, recordando “Zodiac”, afirmou que era também um filme sobre a natureza do medo. Algo que sempre me interessou. Tal como a condição humana. Aquilo que somos capazes de fazer. O questionamento faz parte do processo. E terminou com palavras de David Fincher, que lhe deixou a seguinte máxima: Os grandes filmes fazem perguntas e os maus dão todas as respostas. Não digo que este seja um grande filme, mas pelo menos tenta sê-lo.
Pense-se em Gaza, na Ucrânia (ou em outros locais). Talvez ainda possamos ouvir Burt Lancaster, quando se vira para a câmara e formula a pergunta, em 1961, em “O Julgamento de Nuremberga” (1961), de Stanley Kramer: Onde estávamos nós quando Hitler começou a destilar o seu ódio no Reichstag? E onde estávamos quando os nossos vizinhos começaram a ser levados, à noite, para Dachau?
(O filme tem estreia americana marcada para dia 7 de novembro; os Julgamentos de Nuremberga iniciaram-se a 20 de novembro de 1945 e terminaram a 1 de outubro de 1946).


