O ato de noticiar em 7 filmes

Em tempos de conflito, a missão do jornalismo mostra-se determinante
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“Guerra Civil” (2024), de Alex Garland

No dia 28 de Setembro celebra-se o Dia Mundial do Jornalismo, mas não é festa o que me vem à mente. O que me assalta é a estranha intimidade que cultivamos com a tragédia, a forma como nos acostumámos à morte alheia como se fosse rotina, a maneira quase automática de virar a página, mudar de canal, deixar os números morrerem sem rosto. Jornalismo, afinal, é a arte de tornar visível o invisível, mas o invisível parece sempre vencer, espreitando nas sombras dos gráficos e das manchetes passageiras.

De manhã, a manchete anuncia uma explosão. À tarde, um atentado. À noite, outra catástrofe qualquer. As notícias atravessam-nos como mariposas, rápidas, efémeras demais para que o coração as alcance. Não há tempo para sentir, quanto mais para lamentar. No dia seguinte, já não existem. Talvez seja esse o mecanismo inventado pelo mundo para não sucumbir à loucura, ou seja, esquecer para continuar. Mas esquecemos demasiado rápido, e a memória colectiva dispersa-se antes que a humanidade se possa reconciliar com a dor alheia.

Há, contudo, lugares onde nem essa frágil consolação se permite. Gaza, por exemplo. A televisão mostra um abismo que não é abismo. Lá ainda se procura hortelã para um chá. Ainda há roupas estendidas no varal, conscientes de que a próxima explosão pode levá-las. Ainda há crianças que soltam pipas contra o céu cinzento, tentando, com a ingenuidade da infância, driblar a guerra. E nós, do lado de fora, recebemos apenas o resquício frio dos números, cifras sem rosto, estatísticas que não nos queimam como o calor da pólvora que destrói vidas.

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Palestinos caminham sobre escombros após bombardeios israelenses em Gaza – Foto: Omar al-Qattaa/AFP

O âncora do principal jornal do país inclina-se sobre o teleponto e anuncia que 189 jornalistas morreram em Gaza desde Outubro de 2023. O número atravessa os ouvidos, frio, sem rosto. Para se ter uma ideia do tamanho do desastre, todas as grandes guerras do último século, da Coreia ao Vietname, da Jugoslávia ao Afeganistão, sem esquecer as duas Mundiais, somaram 229 jornalistas mortos. Em Gaza, só até Agosto, já são pelo menos 246. 520 feridos. 800 familiares soterrados na mesma estatística. Cada cifra podia ser a frase inicial de um romance, a voz de alguém que nunca será ouvida, a fotografia que jamais veremos, a reportagem que ficou suspensa no limiar da história.

O Comité para a Protecção de Jornalistas assegura que mais de 180 dessas mortes resultaram de ataques israelenses. Israel, como de costume, nega e ainda classifica jornalistas como terroristas. É um labirinto sem saída, onde cada passo pode desaparecer antes de ser dado. E não é só sangue. 90 jornalistas foram presos, 35 permanecem encarcerados, 12 jamais conheceram julgamento. O jornalismo morre de formas que a comunicação social nem sempre consegue capturar, soterrado sob a burocracia, a censura e o medo.

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Pessoas em luto reagem ao corpo do jornalista palestiniano Hassan Eslaiah, morto num ataque israelita durante a noite ao Hospital Nasser, em Khan Younis, Gaza – Foto: Jehad Alshrafi/The AP

O que mais fere não é apenas a violência, mas o silêncio que se instala depois dela. As histórias que deixam de ser contadas. Os nomes que ninguém lembrará. Os retratos que jamais existirão. E, ainda assim, persistimos. Porque o jornalismo é isso, uma insurreição resguardada, uma tentativa de mostrar que existem pessoas, de provar que ainda há suor, fome, medo e alegria. Escrever para que, em algum recanto do planeta, alguém saiba que ainda há vida, que ainda há humanidade.

No século XXI, quando as imagens chegam em tempo real, quando os drones registam cada instante — e, por vezes, matam — e os números se tornam mais frios do que o chumbo, o jornalismo encara um papel mais imperativo do que nunca. Frente à indiferença, à manipulação e à apatia, cada reportagem, cada fotografia, cada crónica publicada é um acto de heroísmo, uma proclamação que transgride o esquecimento e lembra que, mesmo em meio à guerra, a vida insiste em existir.

Neste dia que deveria ser de celebração, deixo apenas o essencial: parem de nos matar, Palestina livre já. Aproveito também para indicar sete filmes sobre o nosso ofício.

“O Caso Spotlight” (2015), de Tom McCarthy

“O Caso Spotlight” evidencia de forma clara a importância da liberdade de imprensa, acompanhando a equipa de jornalistas investigativos do The Boston Globe na revelação de abusos sexuais cometidos por membros da arquidiocese católica de Boston.

A investigação, baseada em entrevistas, análise de documentos e verificação rigorosa de factos, reuniu provas suficientes para expor os abusos e produzir uma reportagem que marcou a história da Igreja Católica nos Estados Unidos.

A obra sublinha a relevância do jornalismo de investigação na garantia de transparência e responsabilização em todos os sectores da sociedade. Demonstra que, mesmo diante de instituições poderosas, a apuração rigorosa de factos é fundamental para expor injustiças e assegurar que crimes não permaneçam ocultos.

“O Caso Spotlight” torna-se um exemplo da função crítica da imprensa livre enquanto instrumento de controlo social e de preservação da integridade institucional.

“The Post” (2017), de Steven Spielberg

O filme retrata a histórica batalha entre imprensa e governo, quando os editores do The Washington Post decidiram expor segredos sobre a Guerra do Vietname, publicando documentos confidenciais do Pentágono.

A narrativa evidencia a coragem dos jornalistas ao enfrentar pressões políticas e legais para levar à sociedade informações de relevância crítica, muitas vezes em risco das suas carreiras e liberdade.

Esta disputa judicial culminou numa decisão histórica da Suprema Corte dos EUA, que confirmou a liberdade de imprensa como direito constitucional, mesmo quando em conflito com interesses nacionais.

Spielberg aborda também o machismo na indústria jornalística, sublinhando a importância da liderança feminina e da igualdade de género no sector. A personagem de Meryl Streep, Katherine Graham, é apresentada como a primeira mulher a liderar um grande jornal nos Estados Unidos, enfrentando múltiplos obstáculos para afirmar a sua autoridade num meio dominado por homens.

“Repórteres de Guerra” (2010), de Steven Silver

O filme “Repórteres de Guerra” retrata o trabalho de fotojornalistas durante os últimos dias do apartheid e a primeira eleição democrática da África do Sul. A produção mostra como os fotógrafos, conhecidos como o Clube do Bangue Bangue, enfrentaram conflitos sangrentos, tentativas do governo de manter a segregação racial e a miséria nas townships, documentando a realidade do país com rigor.

Ao abordar dilemas éticos da profissão, o filme evidencia a tensão entre a necessidade de registar factos e a obrigação de proteger a dignidade humana, destacando o papel da imprensa em contextos de guerra e conflito.

O poder de uma fotografia para capturar a realidade e ter impacto sobre quem a regista e sobre quem é registado é explorado de forma contundente, sublinhando a responsabilidade dos jornalistas em relatar a verdade de forma ética e precisa.

“Os Homens do Presidente” (1976), de Alan J. Pakula

“Os Homens do Presidente”, inspirado em factos verídicos, narra a investigação de Robert Woodward e Carl Bernstein, jornalistas do Washington Post, sobre o escândalo de Watergate, nos anos 70. A dupla descobre uma teia de espionagem e lavagem de dinheiro que, lentamente, desmorona o poder de Richard Nixon, levando-o à renúncia durante o segundo mandato.

Tudo começa com um episódio aparentemente trivial: a invasão do edifício Watergate por um grupo de criminosos. À primeira vista, parecia um caso banal, digno apenas de notas nas páginas policiais. Contudo, o que se anunciava corriqueiro revela-se progressivamente como o epicentro de um dos maiores escândalos políticos da história norte-americana. Nixon, eleito em 1972 para o segundo mandato, vê-se gradualmente envolvido, enquanto a sombra da suspeita cresce e ameaça a própria presidência.

Meses antes da eleição, os invasores são detidos no quartel-general do Partido Democrata, em Watergate. Ligados a agências como FBI e CIA, foram apanhados com câmeras e microfones. À primeira vista, parecia improvável que isso afetasse a reeleição de Nixon. É então que Woodward e Bernstein emergem no cenário jornalístico, conduzindo uma investigação minuciosa. O filme destaca o empenho destes repórteres em expor a verdade, transformando a busca jornalística numa força capaz de confrontar o poder e revelar a dimensão histórica do escândalo.

“Boa Noite e Boa Sorte” (2006), de George Clooney

O filme “Boa Noite e Boa Sorte” é baseado em factos reais e retrata o clima de medo e perseguição que se instalou nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, período marcado pela caça a supostos comunistas e pela pressão sobre a liberdade de expressão.

A produção centra-se na atuação do jornalista Edward R. Murrow e da sua equipa, que desafiaram o senador Joseph McCarthy, protagonista de uma campanha de intimidação política que ameaçava a carreira e a vida de inúmeros cidadãos.

O filme evidencia o papel determinante da imprensa em defender a verdade e a democracia, mostrando como a reportagem rigorosa pode expor abusos de poder e influenciar a opinião pública mesmo diante de riscos pessoais e pressões institucionais.

Além disso, a obra aborda o impacto do jornalismo televisivo na sociedade, revelando como a comunicação massiva pode amplificar denúncias e mobilizar consciências em momentos de crise política e social.

“Ela Disse” (2022), de Maria Schrader

O filme, baseado no livro homónimo das jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey, do New York Times, evidencia a importância da liberdade de imprensa na denúncia de crimes, sobretudo daqueles que se cometem nas sombras. A investigação conduzida pelas jornalistas e a coragem das vítimas resultaram em várias condenações de Harvey Weinstein por violência sexual, revelando uma rede de abusos que durante décadas permaneceu oculta.

Para além de retratar a coragem individual e colectiva, o filme sublinha também as limitações e desafios intrínsecos a este tipo de jornalismo investigativo. Como provar um crime quando as únicas testemunhas são a vítima e o agressor? A situação no caso de Weinstein era ainda mais complexa: muitas vítimas eram obrigadas a assinar contratos que as impediam de falar sobre os acontecimentos, enquanto o produtor contratava empresas para vigiar jornalistas e monitorizar as próprias vítimas, criando um clima de medo e intimidação.

O filme consegue transmitir não apenas a tensão do trabalho jornalístico, mas também o peso emocional e ético que ele acarreta. Ao acompanhar a investigação passo a passo, o espectador percebe a persistência necessária para confrontar o poder e a impunidade, bem como a importância da solidariedade entre vítimas, jornalistas e sociedade civil na luta por justiça.

“Guerra Civil” (2024), de Alex Garland

O filme explora um futuro distópico em que os Estados Unidos se transformam num cenário de guerra civil. Uma equipa de jornalistas, liderada pela fotojornalista Lee (Kirsten Dunst), percorre o país para documentar a intensidade e a violência do conflito, atravessando cidades devastadas e territórios marcados pelo medo e pela desconfiança. A câmara acompanha não apenas os acontecimentos, mas também o impacto psicológico nos jornalistas e nas comunidades que tentam cobrir, revelando o custo humano da guerra e da informação.

A obra de Garland destacou-se especialmente devido ao clima eleitoral e à crescente polarização entre republicanos e democratas, retratando como divisões políticas podem escalar para violência e instabilidade social. Para além disso, o filme oferece uma reflexão profunda sobre conflitos que ocorrem a nível global, incluindo no Médio Oriente, na América Central e em África, sublinhando a universalidade de certas tensões humanas: o medo, a resistência, a manipulação política e a luta pela sobrevivência.

A narrativa conjuga o jornalismo como testemunho e a experiência pessoal dos repórteres, mostrando que a procura da verdade muitas vezes exige coragem, ética e resiliência perante ameaças constantes. O filme coloca questões sobre a responsabilidade da comunicação social e o poder da imagem como forma de denúncia e memória histórica.