“O Novo Mundo” e o Equilíbrio na Natureza
“O Novo Mundo”, o filme que caminhou para que “A Árvore da Vida” pudesse correr, escrito e realizado por Terrence Malick, trata da vida de Pocahontas desde a chegada dos ingleses à Virgínia até à sua morte, abrangendo um período de 10 anos. Claro está que resumir uma obra cujo extended cut final tem 172 minutos em tão poucas palavras não lhe faz justiça e deixa de fora muitos outros tópicos fundamentais para a compreensão do filme e da presente análise. Por essa razão, e para simplificar, até porque no que diz respeito à obra de Terrence Malick é necessário fazê-lo, digamos que: a vida de Pocahontas e a sua relação com John Smith e, posteriormente, com John Rolfe são a caixa (o ponto de enlace e desenlace da trama), onde se guardam questões como as convenções culturais e o (mal executado) processo de colonização, temáticas sobre as quais os protagonistas se debatem, enquanto, o binómio cidade-campo é o papel que embrulha essa caixa, uma constante à qual, como o “fatum”, as personagens não conseguem escapar.
Ora, explicitando a questão do binómio cidade-campo, esta trata-se de uma reflexão presente na filmografia de Malick, a qual atribui características positivas ao campo e aos elementos a ele associados, e características negativas à cidade. De facto, o realizador trata a Natureza como uma divindade e associa-a, regra geral, a um passado no qual as suas personagens foram felizes. O campo, ou o elemento natural, reflete um modo de vida genuíno e simples. O realizador parte do princípio de que tudo vem de um estado natural e para lá retorna, no entanto, ao longo da sua vida, os indivíduos afastam-se cada vez mais da Natureza, sendo corrompidos pelos bens materiais e pela falsidade emanada da cidade. Esta é representada como um antro de pecado, onde os sujeitos com valores morais são espezinhados e os vilões prosperam. No que respeita à caracterização do campo e da cidade, esta permanece estanque e sem “áreas cinzentas”, ao contrário dos protagonistas de Malick, que se apresentam como figuras em constante mutação, encontrando-se num interminável meio-termo (tal será mais claro na segunda e terceira parte deste texto).
Em “O Novo Mundo”, a protagonista assumida é Pocahontas, no entanto, esta análise recairá, igualmente, sobre o protagonista não assumido que acompanha todo o tempo fílmico: a Natureza. Como se se tratasse de um ruído de fundo, e de facto, em determinados momentos trata-se (ao ouvirmos o chilrear das aves, bem como o vento que toca ao de leve as ervas), a Natureza está sempre presente, indiferente aos estados psicológicos das personagens. Existe e sempre existirá. A sua importância é tal que a longa-metragem se inicia com uma espécie de prólogo, antes da chegada dos navegadores ingleses ao território americano, no qual Pocahontas interpela o elemento natural: “Vem, Espírito. Ajuda-nos a cantar a história da nossa terra. Tu és a nossa Mãe e nós o teu campo de milho. Erguemo-nos da tua alma.” Esta é a única personagem que comunica com a Natureza, sendo que as restantes, através de constantes voice-overs, se interpelam apenas umas às outras. Tal particularidade, leva-nos ao ponto de partida da análise: a proximidade ou afastamento das personagens à Natureza.
Numa escala de proximidade à Natureza, Pocahontas estaria num extremo e John Smith no outro. A personagem feminina é, sem dúvida, a figura mais próxima do modo de vida natural, sendo representada como uma semidivindade à qual é permitida comunicar com a mãe de todas as coisas. O termo semidivindade não foi utilizado ao acaso, visto que Pocahontas, através dos seus rituais e cultura, serve a deusa Mãe e demonstra humildade perante a sua magnitude. Efetivamente, a tribo Powatan, tomada como uma personagem coletiva, é apresentada ao espectador como moral e espiritualmente superior aos ingleses, na medida em que os indígenas conseguem manter um equilíbrio idílico nas relações entre os indivíduos e a Natureza (nas palavras de John Smith: “Eles são gentis, afetuosos, fiéis, sem malícia ou traição. As palavras que significam mentira, engano, ganância, inveja, calúnia e perdão nunca serão ouvidas. Eles não têm ciúmes. Nenhum sentimento de posse. Real, o que eu pensava ser um sonho.”)

Por outro lado, os ingleses são representados como colonizadores violentos, que não pretendem assimilar a cultura indígena, antes erradicá-la e reivindicar as suas terras. De entre estes ingleses, existem, claro, exceções, tal como: John Rolfe, a personagem que melhor conjuga um meio-termo entre o modo de vida natural e o modo de vida citadino. Este é moralmente consciente e o que o liga à cidade é meramente a sua origem. “És o homem que achava que eras… e muito mais”, diz-lhe Pocahontas, concluindo que Rolfe se revela um homem pacato e honesto, características que o afastam dos pares dominados pela ganância e egoísmo. John Rolfe, ao contrário de Smith, coloca o amor pela esposa acima de tudo.
Para Smith, o amor ao Conhecimento e à Aventura comanda todas as suas ações e apesar dos seus sentimentos por Pocahontas despertarem nele uma vontade de ser melhor, este está demasiado preso às suas próprias conceções culturais para conseguir absorver inteiramente a plenitude da floresta que ele toma como um sonho, no seu caso, uma verdadeira utopia da qual ele nunca poderá fazer parte. A sua individualidade e busca incansável por mais, impossibilita-o de viver com Pocahontas. O seu melhoramento não passa de um plano irrealizável, no entanto, esta vontade de ser melhor é o único aspeto que o diferencia dos restantes.
“Novo Mundo” traz para a tela toda a beleza e religiosidade da Natureza, a essência de todos os seres, o campo onde tudo é semeado. É neste campo que Pocahontas vive, que os ingleses decidem estabelecer povoações, que se desenrola o amor de John Smith e John Rolfe por Pocahontas e é para este campo que o espírito da mulher retorna.
A metáfora visual é brilhante na sua eficiência: um dos planos iniciais da obra é o dos barcos ingleses a chegarem numa manhã à Virgínia, John Smith, no porão, vê terra, possivelmente, pela primeira vez em meses, e um dos planos finais é o de um barco, com John Rolfe e o filho (fruto do seu matrimónio com Pocahontas) abordo, a sair do porto, ao anoitecer, talvez com destino à Virgínia. Trata-se de o completar de um ciclo, o ciclo vital. Tudo começa e termina na Natureza.