“O Bom Patrão”: dos troféus que permanecem no escuro

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O título do último filme do realizador espanhol, Fernando León de Aranoa, “O Bom Patrão“, por si, já desperta a curiosidade do espectador comum. Habituado, na sua rotina laboral, a sentir a contradição evidente que existe na conjugação dos dois termos que o compõem, o espectador gera uma espectativa inevitável: ele senta-se e espera, com intensa curiosidade, para ver, afinal, como a câmara de Aranoa irá caçar este gambuzino.

Blanco (Javier Bardem) é o dono de uma empresa de balanças, candidata a um prémio de excelência, à espera do dia de chegada do comité que avaliará o desempenho da sua empresa. Para garantir mais um prémio (entre os vários que já se encontram expostos na sua parede de troféus), Blanco faz um exercício de limpeza na sua empresa, dedicando todas as suas energias a tentar resolver os problemas que possam manchar a sua reputação. A pergunta que se coloca é: até onde estará disposto a ir Blanco nas suas acções para limpar a fachada da sua empresa e agradar ao comité de avaliação?

O paradoxo presente no título, para além de gerar uma expectativa, é também a génese da premissa que pretende por à prova a filosofia yin-yang que perpassa todo o filme. Se os opostos já se encontram no título, a própria narrativa acompanha a lógica ao colocar o protagonista como proprietário de uma fábrica de balanças, e o próprio nome já remete para um esforço de branqueamento que anima a personagem em toda a sua acção.

Se, em termos narrativos, a melhor e mais eficaz arma de Blanco é a sua brancura, o que existe de cinematograficamente mais significativo neste filme é, sem dúvida, a forma como a actuação de Javier Bardem a consegue traduzir. A fisionomia de Bardem vai desenhando na tela essa camada polida que a personagem coloca sobre si mesma: um homem, de feições humildes e cujo olhar meigo, que nos fita por cima dos seus óculos, transmite o seu charme descontraído e bonacheirão. Blanco é alguém que tem a perfeita noção do olhar avaliador contemporâneo: ele é um homem politicamente correcto a trabalhar para o politicamente correcto.

Porém, eis que, no início do filme, damos de caras com o antípoda do politicamente correcto, Jose (Óscar de la Fuente), o politicamente insurrecto. Enquanto Blanco, cheio de sorrisos, enceta o seu discurso motivador para os operários da fábrica, Jose leva os seus filhos pequenos para a empresa e exige que o despeçam na frente das duas crianças. Neste momento está criada a grande tensão do filme, que colocará nos dois pratos da balança a irresolúvel assimetria entre a falsa correcção e a verdade da insurreição daquele que expõe uma ferida. Jose, após o seu despedimento, decide ocupar um terreno baldio, em frente à fábrica de Blanco, para se manifestar sobre a situação de fragilidade em que foi colocado. Blanco apenas pensa numa solução, muito pragmática e temporária, que possa afastar Jose dos olhares do comité de avaliação.

A progressão narrativa do filme é uma intensificação do desespero de Blanco para tentar abafar a manifestação de Jose. Na primeira parte do filme, os seus gestos de preocupação parecem conter alguma verdade, como a vontade de resolver a crise conjugal de Miralles (Manolo Solo), seu amigo e chefe de produção na empresa; ou o diálogo com o adolescente problemático Salva (Martín Páez), filho do mais antigo e mais frágil dos seus funcionários. Mas, com a proximidade do dia da avaliação, a persistência de Jose é a pedra no sapato de Blanco, que o levará a apertar o gatilho da arma que ele esconde por baixo das suas luvas perfumadas. Esta bala ensanguentada será perfeitamente planeada e dissimulada por gestos de uma inexplicável bonomia patronal. Após o crime cometido, e por cima do cadáver, ainda quente, que fez cair, Blanco faz discursos de louvor, oferece férias para os que sofrem, e ainda dá o nome da sua vítima a um novo modelo de balanças.

Em negócios, afinal todas as crises se tornam oportunidades. Não existe maldade escondida que não se possa tornar em aparência de bondade e é neste ponto que o cinema mostra a sua capacidade de nos devolver os gestos que a vida tão facilmente nos esconde. Afinal a câmara não caça o animal imaginário, ela mostra o sangue escondido nos interstícios das garras de um abutre com vestes de penugem reluzente.

Aranoa mostra os lados mais obscuros das aparências políticas solidárias com uma certa leveza. O filme nunca deixa o seu tom cómico esmorecer para fazer surgir o horror que lhe é intrínseco. O suspense é garantido através de alguns detalhes que a actuação de Bardem tão bem transparece, como o momento neurótico em que este sente a situação a fugir do seu controlo. No momento em que achamos que a máscara parece desfazer-se, Blanco consegue reforça-la com superior eficácia.

No final, contempla orgulhosamente a sua imagem refletida no novo troféu. Assim como a luz já focava o espaço vazio onde desejava colocar o troféu, Blanco deixa na obscuridade e no esquecimento todos os cacos com que vai construindo a sua empresa.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico.

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“O Bom Patrão”: dos troféus que permanecem no escuro
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