Depois do seu tão bem sucedido “Correio de Droga”, Clint Eastwood regressa com um filme onde mostra como a mestria de quem faz cinema se manifesta por uma incansável busca de simplicidade, que só se vai tornado visível quando se alcança o maior grau de subtileza criativa. Sabemos que estamos perante um realizador maduro, quando nos seus filmes conseguimos ver o quanto neles se manifestam a intuição, a argúcia e a precisão – por isso, Robert Bresson escreveu que o realizador necessita, ele próprio, de ser um instrumento de precisão.
Neste filme, o mérito desta subtileza deve ser partilhado com aquele que conseguiu, através de um grande trabalho de investigação levar para dentro de uma estrutura narrativa cinematográfica e dar o corpo dramático a um acontecimento factual como o de Richard Jewell. O argumento foi escrito por Billy Ray, tendo como base o artigo “American Nightmare: The Ballad Of Richard Jewell”, escrito pela jornalista Marie Brenner, e o livro “The Suspect: An Olympic Bombing, the FBI, the Media, and Richard Jewell, the Man Caught in the Middle”, escrito por Kent Alexander e Kevin Salwen. Este último título consegue resumir bem a própria história: a explosão de uma bomba durante os Jogos Olímpico de Atlanta, na Geórgia; e a forma como o FBI e os média exploraram a personalidade simples e frágil de Richard Jewell.
A subtileza que para mim se evidenciou no filme, começa pelas particularidades da personagem de Richard Jewell, cuja intuição de Eastwood escolheu ser interpretada por Paul Walter Hauser. Hauser interpreta o herói inesperado, que Eastwood já tinha retractado em filmes anteriores: como o Comandante Chesley Sullenberger, em “Sully”; os três jovens americanos que impedem um atentado terrorista em “15:17 Destino Paris”; ou até mesmo a procura de redenção de um velho inocente e despreocupado, em “Correio de Droga”. Jewell vive uma vida bastante pacata, entre o exercício da profissão de vigilante e a sua vida privada, onde habita com a mãe. É admirável a extrema dedicação à sua profissão, alimentada por uma inabalável crença nas instituições de segurança. Richard é escalado para vigiar os concertos, no Parque Olímpico Centenário, que celebram a edição do Jogos Olímpicos de 1997, em Atlanta. Na noite do atentado, contrastando com a postura mais relaxada dos polícias, percebemos a forma como o vigilante dedica toda a sua atenção a tentar perceber o que se passa à sua volta. Todos estes gestos indicam a sua capacidade de entrega, que é elevada até uma abnegação que o faz denegar todas as formas de injustiça que vai sofrendo ao longo do processo de investigação policial. É a excessiva calma de Richard perante todas as investidas manipulatórias por parte da polícia que desconcerta, tanto aqueles que estão perto dele como nós, espectadores. E é precisamente nessa calma que reside a beleza do filme.
Para fazer um contraste à inocência, à pacatez e ao despojamento de Richard, Clint Eastwood vê, sagazmente, em Sam Rockwell a dose de loucura capaz de dar a Richard o punho cerrado e enérgico que necessitará para tentar deter as várias tentativas de invasão e manipulação, por parte da polícia e dos media. Watson Bryant é a reacção mais pronta e explosiva, o advogado de pavio curto que, à custa de uns Snickers e da necessária aproximação a Richard e ao seu caso, vai compreendendo que a inocência de Richard ultrapassa em larga medida o âmbito do conceito judicial. Enquanto a polícia e os media vão invadindo o espaço privado dos Jewell à caça de uma matéria qualquer com que possam cozinhar as suas narrativas de incriminação, Bryant e Nadya vão criando laços com Richard e Bobi Jewell – a mãe de Richard – ao permanecerem juntos. Os laços que vão sendo criados por esta aproximação são uma forma de resistência em relação à horda animalesca que os espera fora de portas, ao bombardeamento de flashes e às várias intrujices que a polícia vai ardilosamente montando contra Richard.
Mas, a imagem que tem mais poder de afecto é essa resistência calma onde Richard, sentado perante os polícias responsáveis pela investigação, tranquilamente os confronta com a verdade. Esta aparece nas palavras serenas de Richard, irrompe da mesma passividade que em todo o filme nos arreliava pela sua aparente incapacidade de reagir a toda a humilhação, para ali ganhar o poder especial de desmontar todo o embuste perpetrado contra si. A perplexidade na cara dos que o ouviram, a ausência de uma resposta, a resistência calma, enfim, essa inesperada dialéctica negativa criada por Richard, tornam-se a maior fonte de beleza de todo o filme. Como se este, como um rio, ali desaguasse, com a mesma calma que existe na alma do protagonista que retracta.
Se, no imediato, o filme nos pode parecer demasiado simples, com uma história simples, um protagonista simples, um desenvolvimento simples, isso acontece para que atentemos para algo mais profundo que em toda essa simplicidade se dá. A lição de Eastwood com este filme é a de um verdadeiro mestre do cinema: um filme faz-se com precisão, com a mestria de quem possui uma intuição capaz de retirar de cena as coisas espampanantes e berrantes, livrando-se de todos os movimentos excessivos, para conseguir colocar-nos à escuta daquilo que só se manifesta na contemplação mais calma e atenta. Essa talvez seja a tarefa mais difícil de todas, a de conseguir, através do cinema, não dar apenas a ver, mas também a escutar.