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“O Corno do Centeio” – Resistência e autonomia corporal

"O Corno do Centeio" (2023), Jaione Camborda "O Corno do Centeio" (2023), Jaione Camborda
"O Corno do Centeio" (2023), Jaione Camborda
Vencedor da Concha de Ouro na 72.ª edição do Festival de San Sebastián, “O Corno do Centeio” (2023), de Jaione Camborda, ambientado na Ilha de Arousa em 1971, conta a história de Maria (Janet Novás), uma mulher galega que, para além do seu trabalho no campo e na pesca de marisco, é também conhecida na sua comunidade como parteira e por ajudar mulheres a abortarem. Após um acontecimento trágico e inesperado, foge para Portugal através de uma rota de contrabando. Em Portugal, conhece Anabela (Siobhan Fernandes), uma mãe solteira que todas as noites atravessa a fronteira para se prostituir na Galiza.

Esta co-produção entre Espanha, Portugal e Bélgica estreou em Portugal na 17.ª edição do LEFFEST e teve estreia comercial a 11 de janeiro de 2024. Em Portugal, a produção foi levada a cabo pela Bando à Parte, conta com nomes portugueses no elenco, tais como Siobhan Fernandes, Filomena Gigante e Nuno Preto, a direção de fotografia foi da autoria do português Rui Poças.

"O Corno do Centeio" (2023), Jaione Camborda
“O Corno do Centeio” (2023), Jaione Camborda

A narrativa do filme ocorre num momento crítico da política de ambos os países. Espanha vivia os últimos anos do Franquismo, e Portugal encontrava-se a três anos do 25 de Abril. Ambos os países e a sua gente ansiavam por liberdade e pelos seus direitos, e é neste contexto que Jaione conta uma narrativa de resistência. Resistência face a um longo período vivido em ditadura, resistência das mulheres que durante décadas viram os seus direitos violados e a resistência de uma protagonista que, por sororidade, vê-se obrigada a fugir da sua terra. É notável ver como o filme começa e acaba com cenas de parto, mas o ponto de viragem é uma cena de aborto. O primeiro parto é uma cena longa, lenta; apercebemo-nos da luta e dor de uma mulher durante um momento tão marcante da vida. A segunda cena de parto, e por sua vez última do filme, é silenciosa e dá até uma sensação ao espectador de liberdade, como se aquele parto fosse o momento de libertação da personagem que acompanhamos. Mas é o aborto o momento catalisador, e é através desta mudança na narrativa que Jaione expõe não só o perigo dos abortos clandestinos, como também a falta do direito à autonomia corporal.

O filme está repleto de elementos simbólicos, começando pelo próprio título, no original “O Corno”, utilizado por Maria para induzir o aborto, remete para o esporão-do-centeio, fungo parasita causador da doença ergotismo, na Idade Média conhecida como ‘Fogo de Santo António’; o fungo é causador de morte, parasita de uma das principais fontes de alimento. Outro momento simbólico ocorre durante as festividades na Ilha de Arousa, num espetáculo de magia, o ilusionista corta ao meio uma jovem rapariga na zona pélvica, antecedendo desta maneira o desfecho trágico da cena de aborto ocorrida momentos antes. E é com este ilusionista que Maria se envolve, engravida dele após um ato sexual na terra, no meio do trigo; é da terra que vem a vida e é da terra que vem a morte.

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A segunda longa-metragem de Jaione Camborda, que se tornou a primeira realizadora espanhola a ganhar a Concha de Ouro, é de mulheres e para mulheres, fazendo justiça a todas aquelas que, nas mãos da ditadura, não tiveram palavra. É um filme também que expõe a proximidade cultural entre o norte de Portugal e a Galiza, os seus modos de vida e a luta de uma população que, durante décadas de ditaduras, não viu a possibilidade de viver livremente.