No dia 2 de setembro, assisti novamente a uma das minhas cinebiografias favoritas: o filme “O Discurso do Rei” (2010), realizado com maestria por Tom Hooper, o talentoso realizador responsável por obras icónicas como “Os Miseráveis” (2012), “A Rapariga Dinamarquesa” (2015) e o polêmico “Cats” (2019).
Este drama envolvente é uma verdadeira ode à resiliência humana, destacando os desafios e triunfos de pessoas que lutam contra a gagueira. Através da jornada inspiradora do rei George VI, pai da amada rainha Elizabeth II, testemunhamos a coragem e a determinação de superar adversidades aparentemente intransponíveis.
O reservado príncipe herdeiro, Albert Frederick Arthur George, Duque de Iorque (título atualmente detido por seu neto, o polêmico príncipe André, o tido filho favorito da rainha Elizabeth II), estava completamente confortável em não ser o próximo na linha de sucessão ao trono britânico. A eloquência não era seu ponto forte, já que sofria de gagueira e enfrentava desafios para pronunciar palavras. Na alta sociedade britânica, a gagueira era vista como uma “fragilidade de caráter”.
Dito isto, o longa de Hooper é iniciado com uma cena emblemática em que o Príncipe Albert, Duque de York, interpretado por Colin Firth, enfrenta uma multidão no encerramento da British Empire Exhibition de 1925, no Estádio de Wembley, ao lado de sua esposa Elizabeth, interpretada por Helena Bonham Carter. No entanto, a gagueira de Albert durante seu discurso deixa o público perplexo e surpreso.
Em busca de uma solução para sua gagueira, o Príncipe Albert tenta várias abordagens de tratamento, mas acaba desanimando. É quando sua esposa o convence a visitar Lionel Logue, um terapeuta de fala australiano que reside em Londres, interpretado por Geoffrey Rush.
Na sua primeira “consulta”, Logue opta por uma abordagem inusitada, quebrando o protocolo real ao se dirigir ao Duque de York pelo seu apelido e encorajando-os a tratarem-se de forma mais informal. Ele convence Albert a recitar o famoso monólogo “Ser ou não ser” da peça “Hamlet” de William Shakespeare, enquanto ele mesmo escuta a ópera “Le nozze di Figaro” de Mozart em fones de ouvido. Como parte do seu método terapêutico, Logue grava a interpretação de Albert em um disco de vinil.
Entretanto, Albert, convencido de que gaguejou durante toda a sessão, sai do consultório irritado. Apesar desse contratempo, Logue presenteia-o com a gravação como um símbolo de seu compromisso em ajudar o Príncipe a superar suas inseguranças e encontrar sua voz.
Esse segundo ato, estabelece o conflito central do filme e apresenta os personagens principais, ressaltando a jornada emocional e terapêutica que Albert está prestes a iniciar para superar sua gagueira e abraçar plenamente seu papel como líder e futuro rei do Reino Unido e dos Domínios Britânicos.
Na sequência, em outra cena, após proferir seu discurso de Natal em 1934, o rei George V (interpretado por Michael Gambon, conhecido por seu papel como o eterno professor Alvo Dumbledore na série Harry Potter) faz um comentário minucioso a seu filho sobre a importância da radiodifusão para a monarquia moderna.
Na mesma cena, em um momento tenso, encorajado pelo pai, o duque tenta ler o mesmo texto em voz alta, porém ele enfrenta dificuldades, lutando para articular as palavras e gaguejando várias vezes. Essa condição de gagueira, embora Albert compreenda claramente o que deseja dizer, o impede de controlar o ritmo e a duração dos sons, resultando em repetições, prolongamentos ou até mesmo interrupções na fala.
A reação do rei George V à dificuldade de seu filho é de nervosismo e antipatia, destacando a tensão entre a compreensão clara do significado das palavras e os desafios na expressão fluente da fala devido à gagueira.
Naquela mesma noite, Bertie (como era conhecido na intimidade) estava se sentindo deprimido e frustrado com a sua condição de gagueira. Em busca de distração, ele decide ouvir a gravação de Logue.
Para sua surpresa, ele percebe que não gagueja enquanto declama um trecho de Hamlet. Isso pode ser explicado pelo fato de que pessoas com gagueira muitas vezes são fluentes quando cantam, declamam poemas, imitam sotaques ou repetem falas de personagens teatrais, porque essas atividades estimulam uma região diferente do cérebro, o hemisfério direito, em comparação com a fala espontânea, que é controlada pelo hemisfério esquerdo e pode apresentar falta de sincronia.
Esse acontecimento leva Bertie a retornar ao consultório de Logue, onde eles têm uma conversa séria sobre as condições do tratamento. Eles passam a trabalhar juntos em técnicas de relaxamento muscular e controle respiratório, enquanto buscam identificar a origem psicológica da gagueira.
Entretanto, o filme não oferece contribuições diretas em relação aos tratamentos para a gagueira, o que é compreensível, uma vez que a história se passa na década de 30, quando pouco se sabia sobre a gagueira como um fenômeno neurológico e as especulações sobre suas causas eram limitadas.
Apesar disso, o filme retrata a presença de exercícios respiratórios e rítmicos, que são comuns em tratamentos atuais. No entanto, também são mostrados procedimentos equivocados e prejudiciais, como fumar para relaxar as pregas vocais, que na vida real provavelmente causaram problemas de saúde, como câncer pulmonar, entre outros.
Felizmente, o filme trata essas práticas de forma jocosa, deixando claro que não são efetivas para melhorar a qualidade da fala. Embora o filme apresente algumas intuições sobre fenômenos cerebrais que são fundamentais para tratamentos efetivos atuais, essas ideias não são desenvolvidas ao longo da trama.
Ademais, ao assistir a esse filme inspirador, somos levados a uma jornada poderosa de superação e triunfo, que nos lembra que, com determinação e apoio, qualquer obstáculo pode ser superado e que a verdadeira coragem reside na capacidade de enfrentar nossos medos e encontrar nossa voz, independentemente das adversidades que possamos enfrentar.
Sob a realização de Tom Hooper em “O Discurso do Rei”, fica evidenciado o fardo de se tornar um rei. Ao contrário do que muitos podem pensar, não há glamour que possa apagar as enormes responsabilidades de liderar uma nação. Embora o rei não possua o poder de ação de um primeiro-ministro, é ele quem precisa manter as aparências e cumprir com suas obrigações reais. Hooper utilizou diversas técnicas de filmagem para evocar os sentimentos de constrição que o rei enfrenta.
Hooper retratou de forma realista o peso que a realeza carrega, destacando que o glamour muitas vezes é apenas uma fachada para as verdadeiras responsabilidades e pressões do cargo. Utilizando técnicas de filmagem cuidadosamente selecionadas, ele capturou a sensação de restrição e opressão que o protagonista, o rei George VI, enfrenta em seu papel como líder de uma nação.
O argumentista David Seidler, que também gaguejava na infância devido ao trauma emocional da guerra, foi inspirado a estudar a vida de George VI. Ele afirmou que os melhores diálogos do filme não foram de sua autoria, mas sim retirados diretamente do diário de Lionel Logue, o fonoaudiólogo autodidata, revelados apenas cinco anos atrás pelo neto de Logue. Seidler sempre foi fascinado pela história de superação do monarca, o que o levou a desenvolver o argumento e, posteriormente, o argumento de “O Discurso do Rei”.
É importante mencionar que, na época, Seidler estava enfrentando um câncer e usou esse período difícil para se dedicar à construção da narrativa do filme. Depois de completar o argumento e ter conseguido a remissão do câncer, ele mostrou seu trabalho à esposa. Embora ela tenha gostado do texto, achou que estava cheio de linguagem técnica de cinema e sugeriu que ele o reescrevesse como uma peça de teatro, para que ele se concentrasse mais nos personagens. Seidler tomou a decisão de rasgar o argumento original e escrever uma peça do zero, baseando-se em suas pesquisas.
Após completar a peça, Seidler percebeu que realmente havia gostado do resultado e a enviou para algumas pessoas para obter opiniões. O texto acabou chegando às mãos de Tom Hooper, que adaptou a peça para o grande ecrã.
Enfim, “O Discurso do Rei” é um lembrete comovente de que todos têm o poder de se levantar, enfrentar seus desafios de frente e encontrar sua própria voz, não importa quão difícil possa parecer.
Na 83ª edição dos Óscares, o longa recebeu um total de 12 nomeações, sendo premiado com quatro estatuetas. As categorias em que foi premiado foram Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator e Melhor Argumento Original. O filme também recebeu nomeações nas categorias de Melhor Ator Secundário, Melhor Atriz Secundária, Melhor Banda Sonora, Melhor Mixagem de Som, Melhor Direção de Arte, Melhor Fotografia, Melhor Guarda-roupa e Melhor Edição.