Rever “O Discurso do Rei” (2010), de Tom Hooper, foi como abrir uma gaveta esquecida: o conteúdo é familiar, mas o impacto é outro. Vi-o há alguns anos, noutra etapa da vida. Mas há filmes que amadurecem connosco. O que antes parecia apenas comovente ou bem construído, agora reverbera num lugar mais íntimo, mais exposto. Talvez seja isso que distingue o cinema que permanece — a sua capacidade de, ao narrar o outro, nos devolver a nós próprios.
A premissa, à primeira vista, é simples: Albert, duque de York, precisa aprender a falar em público sem gaguejar. Mas o que está em jogo é muito mais do que a dicção. É o peso da responsabilidade. É o trauma da infância. É o lugar que a monarquia ocupa num mundo a fervilhar, às portas da Segunda Guerra Mundial. Albert não é apenas um homem com dificuldades na fala — é alguém forçado a ser símbolo de unidade num tempo de ruído e medo, quando ele próprio vive mergulhado em silêncios interiores.
E é aí que o filme ganha uma densidade rara. O guião de David Seidler, que conviveu com a gaguez na infância, foi escrito com a delicadeza de quem conhece a dor de tentar falar e não conseguir. Não há pressa. Não há caricaturas. O sofrimento de Bertie é tratado com respeito e empatia. A dor de cada palavra que não sai é sentida na pele, nos olhos baixos, na tensão do maxilar, nos silêncios que dizem mais do que qualquer frase bem construída.
Colin Firth entrega aqui uma das interpretações mais pungentes da sua carreira. O seu Bertie é contido, vulnerável, mas também teimoso e, por vezes, até arrogante. Porque o orgulho é muitas vezes a última defesa de quem sente vergonha. A relação com Lionel Logue (vivido com carisma e precisão por Geoffrey Rush) é o coração do filme. Eles não são apenas paciente e terapeuta — são dois homens que se encontram numa fratura do mundo, numa amizade improvável, construída entre sessões de fonética, gargalhadas tímidas e confrontos duros.
No centro desta jornada, encontra-se também a figura discreta e essencial de Elizabeth (vivida com delicadeza por Helena Bonham Carter), a esposa de Albert. A sua presença é uma âncora emocional num mundo onde tudo exige compostura e rigidez. É ela quem procura Lionel Logue, quem insiste quando o próprio marido hesita, quem vê para além do título e da gaguez. O apoio de Elizabeth não é ruidoso — é feito de gestos pequenos, mas firmes, e de uma confiança serena que nunca vacila. Ao contrário da frieza institucional que o cerca, ela oferece a intimidade segura do afecto incondicional. E talvez seja essa rede de cuidado, muitas vezes invisível, que torna possível ao futuro rei dar voz àquilo que sempre esteve aprisionado dentro de si.
Há cenas que ficam. A primeira vez que Albert grava a sua voz. A leitura de Shakespeare ao som de Mozart, enquanto escuta-se a si mesmo sem gaguejar — um momento de espanto e quase incredulidade, como se tivesse ouvido alguém que sempre esteve escondido dentro de si. A sessão em que grita impropérios para soltar a língua — como se a raiva, por fim, tivesse autorização para sair. Ou a cena final, o discurso de guerra, onde cada pausa é um pequeno abismo vencido, cada palavra um ato de coragem.
Tom Hooper filma tudo com uma sensibilidade cirúrgica. Os enquadramentos amplos e assimétricos colocam frequentemente Bertie deslocado no quadro — visualizando a sua própria sensação de inadequação. Os corredores longos e frios, os espaços vazios da realeza, contrastam com a intimidade acolhedora do consultório improvisado de Logue. A banda sonora de Alexandre Desplat pontua a narrativa sem exagero, mas com emoção contida, como se caminhasse em paralelo com o próprio Bertie — hesitante, mas determinado.
Mais do que uma história sobre superação, “O Discurso do Rei” é um filme sobre humanidade. Sobre as vozes que tremem, os medos que nos calcam o peito, as máscaras que vestimos para esconder o que nos fragiliza. É também sobre escuta. Porque o que cura Bertie não é só a técnica de Logue, mas a atenção que ele nunca recebeu — nem do pai, nem dos tutores, nem da estrutura opressiva da monarquia. Ser ouvido com genuína empatia é, aqui, tão curativo quanto qualquer exercício vocal.
E há, claro, o peso simbólico. O rei, enquanto figura pública, representa estabilidade. Numa época de rádio e discursos transmitidos em directo, a sua voz tinha de soar firme, confiante, real. O paradoxo está justamente aí: é no momento em que Bertie assume as suas fragilidades, que se torna, de facto, um rei. Porque não há nobreza maior do que enfrentar os próprios medos e ainda assim permanecer de pé, não por glória, mas por dever — e amor.
O filme ganhou quatro Óscares — Melhor Filme, Realização, Ator e Argumento Original — mas mais do que troféus, deixou uma marca. Lembro-me de, na primeira vez que o vi, ter ficado impressionado com a elegância do conjunto. Agora, revejo-o e o que mais me toca são as entrelinhas. As pausas. A dor invisível. O abraço contido entre dois homens que se reconheceram num mundo que lhes exigia máscaras.
Talvez seja isso que me faz regressar a este filme: ele lembra-me que todos carregamos a nossa própria gaguez. Uns na fala, outros nas emoções, outros ainda nos silêncios que preferimos manter para não sermos julgados. E que há coragem, sim, em cada tentativa de pronunciar, com verdade, o que se sente cá dentro.