Do fundo de um lago sossegado ou de um rio doce emerge uma criatura feminina de espírito humano, mas aspeto pisciano. A sua aparência física é ambígua mas, na necessidade de a reencarnar, tal como muitos autores europeus o fizeram, associar-lha-íamos a uma tez pálida, coberta por uma camada fina e pegajosa de água que, num rasto, deixa um brilho translúcido. Como se entre o seu ser e o que a rodeia pouco se distinguisse. Na Alemanha, o nome desta criatura mítica, “Undine” (e, menos comum, Nixia), remete para uma variação do original latim unda, traduzido onda. No antigo Sacro Império Romano-Germânico, Escandinávia, Polónia e Gália, a figura heráldica usada tipicamente em brasões e referente a histórias contadas pelas damas enquanto teciam ou oriunda de cantigas dos trovadores era intitulada de Melusina. Por sua vez, em Portugal, as ninfas são a aceção mais próxima à lenda marinha.
Num percurso que remete para o ano 8 d.C., para as Metamorfoses de Ovídio e para os escritos de alquimia de Paracelso, Undine, chamemos-lhe assim, é descrita como uma representação do elemento da água, em linguagem trivial, uma sereia, que entra em contacto com o meio humano e se molda às suas características como se dele fizesse parte. Tanto em Os Lusíadas como no conto Conde de Gabalis, a figura folclore é descrita como possuidora de uma energia atrativa para os homens, uma projeção dos desejos mais cobiçados do sexo masculino, simplifica Christian Petzold, realizador da longa-metragem alemã “Undine”, de 2020.
Undine: o mito no contemporâneo
O realizador premiado pelo Festival de Berlim com o Urso de Prata de melhor realizador em 2012 não foge muito ao mote da lenda folclórica. Inspirado pelo conto de Friedrich de la Motte Fouqué Petzold propõe-se a transpor o mito para o grande ecrã e para a realidade contemporânea de Berlim. A narrativa é sucinta: Undine (Paula Beer), historiadora que faz visitas guiadas sobre o desenvolvimento histórico da capital da Alemanha, separa-se do seu amante Johannes (Jacob Matschenz), que se encontrava temporariamente afastado da sua esposa. No seguimento da separação, Undine, ao querer na sua vida outro homem, Christoph (Franz Rogowski), um mergulhador industrial, e num momento de fragilidade do mesmo, sente-se na necessidade de sacrificar a vida do antigo amante em prol da sobrevivência do novo, que se encontra em perigo de vida. O desfecho mágico é percetível ao nos darmos conta de que esta ligação de Undine com o novo amante é algo ambígua e isolada da realidade quotidiana do homem, como que uma realidade imaginada, mas que afeta Christoph ao ponto de, após a súbita fuga de Undine, ainda a encontrar debaixo de água. Sugerindo assim que, não só Undine age em conformidade com o elemento da água e através do mesmo, como também se funde com ele. Quando, num tom realista mágico, no conto de Fouqué se escreve “my tears have been his death”, Christian Petzold propõe a seguinte conexão: Undine, ao afogar o seu antigo amante, de seguida (em montagem, é precisamente a próxima cena) faz emergir o seu novo amante de um coma. Ambos os atos são feitos através do elemento água (lágrimas e afogamento).

Uma visão hispânica
O cinema espanhol aposta, também, na fusão entre o realismo e a mitologia de Undine. “A Água”, longa-metragem de estreia de Elena López Riera, arrisca como “Undine” de Christian, na medida em que transpõe uma lenda de grande abordagem literária e cinema de massas (no caso, “A Pequena Sereia”) para uma realidade corriqueira e contemporânea no cinema de autor. No entanto, acrescenta dois elementos – a visão feminina que vai além das projeções masculinas e a intervenção da religião no universo do realismo mágico.
Ana (Luna Pamies), personagem principal de El Água, é filha de uma mãe solteira, que por sua vez é filha de outra. A adolescente, durante o verão, conhece um rapaz com quem se envolve, mas mantém uma parcial distância devido a um rumor que a inquieta e que futuramente a impediria de manter contacto com homens. Este mito é passado de geração em geração, fazendo acreditar que, quando as cheias recorrentes do rio ocorrem, isso é sinal de que uma mulher vai ser atraída e desaparecer, presumivelmente em conexão com o rio.
Esta narrativa, na sua metalinguagem, já é uma realidade fantasiosa: na medida em que a história centrada em Ana é inspirada na experiência pessoal da realizadora, que foi, também, recetora de vários relatos do mito em questão. Elena López Riera aproveita esse facto para intercalar testemunhos aparentemente reais sobre essa vivência e a narrativa ficcional do filme. Em formato de entrevista, são-nos apresentadas várias histórias e teorias de mulheres que receiam que as suas contemporâneas venham a ser as próximas “Undines”. Apesar de na sua montagem consolidar o ambiente realista mágico, El Água poderia ter sido mais bem-sucedido. Remetendo para o filme recente de Karim Aïnouz, Marinheiro das Montanhas (2021), que numa viagem à Argentina aborda diversos familiares sem ser consumida por alguma ficção, faz pensar se esta escolha alternante de Elena Riera, apesar de interessante, não acabará por ser absorvida pela ficção da sua narrativa.
Em contraponto com a “Undine” de Christian Petzold, Ana de El Água, apesar de não ser intitulada pelo nome da mitologia, sente a mesma atração pela água. No entanto, o filme espanhol não se foca tanto na utilidade da água ao serviço da atração pelo sexo masculino: pelo contrário, este parece ser apenas um contratempo entre a relação de Ana com a água. Enquanto há, no mito “original”, o entendimento de que Undine eventualmente abandona os homens que atrai e volta ao seu elemento original (e não nego que isso não se reflita, em parte, também em El Água), Elena Riera cria diversos momentos em que a personagem mostra consciência da influência que a água tem em si e como lida com essa proximidade do misticismo. A aproximação à água pode ser símbolo de uma emancipação, maturidade ou mesmo escolha de vida enquanto mulher – existir além da projeção dos desejos do outro. O livro de Ingeborg Bachmann, Undine Geht (que encena a visão de Undine em rutura com o porquê da sua existência), apesar de ser uma inspiração admitida por Christian Petzold, parece encaixar mais na abordagem que Elena Riera cria em El Água.

A religião como elemento fundamental no realismo mágico
O facto de mitos como Undine serem considerados mitos populares, moldados por comportamentos e crenças intrínsecas do quotidiano, abre possibilidade para a eventual influência que a religião pode ter na sua conservação.
Na literatura de Ingeborg Bachmann, há uma notória separação entre o elemento da água, ambiente pessoal de Undine, a sua utopia, lugar imaginário; e o elemento da terra, referente à realidade humana, palpável. Undine assume um papel de observadora dos dois mundos, concluindo que o homem impossibilita a comunicação entre o binómio água/terra, devido às suas infidelidades, incongruências e crueldades. Numa abordagem de género: uma impossível ligação entre o mundo masculino e o mundo feminino.
Numa entrevista de Cláudia Varejão à plataforma Coffee Paste, relativamente ao filme “Lobo e Cão” (que aborda as questões de identidade de género e orientação sexual dentro de um local intrinsecamente religioso), a realizadora aposta numa associação semelhante à de Bachmann. Ao explicar o título do seu filme, Cláudia Varejão faz uma distinção entre mundos regidos pelo género: o lobo, animal com mais liberdade e poder (referente à visão do homem na sociedade), e o cão, domesticado e contido (remetendo para a mulher).
No entanto, há uma análise além-género que intensifica esta incapacidade de comunicação entre dois mundos. Vejamos: o lobo e o cão não são animais antagónicos, e muito menos a terra e a água. Quando um dos jovens do grupo queer de São Miguel se vê forçado a participar nas romarias da ilha, não está a ser forçado a entrar num mundo diferente do seu género. Perto de si encontram-se outros, aparentemente, homens. O que faz o jovem sentir-se isolado é um problema de cariz geográfico, e sobretudo de valores e crenças.
A Religião como Superestrutura
A consciência contemporânea do mito de Undine leva à recusa de sujeição às vontades do homem. No entanto, essas vontades provêm de uma superestrutura: moralidade, crenças que influenciam o pensamento do homem, a sua maneira de estar na sociedade. Ana (El Água), em momento de desespero com a sua consciência, procura ainda resposta na igreja mais próxima de si. Em Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx apontava a paradoxalidade da religião: “A religião não faz o Homem, mas, ao contrário, o Homem faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e a autoestima do Homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o Homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O Homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade.”, subentendendo que a religião consiste numa eminência superior às vontades do ser humano, mas intrínseca ao próprio. Esta consciencialização cria dificuldade em reconhecer as origens comportamentais humanas, pois o homem é reação de uma imposição religiosa consequentemente patriarcal, como também pode ser considerado o seu causador. Ana pode ser fruto do ambiente opressor que a rodeia, como também a culpada por não ser um entrave neste processo. Esta dicotomia leva à ponderação de se a crença poderá ter um efeito semelhante no sujeito, realizador que ficciona, e reflexão na sua arte e cultura.
Torna-se, assim, mais simples de compreender a origem de mitos como o de Undine. Mesmo que o novo realismo mágico no cinema se proponha a dar uma visão diferente dessas lendas e mitos, existe, ainda, a repercussão ou a reprodução de antigas crenças que se encontram na raiz desses mitos. E a exploração do tema, mesmo que visto através de uma rutura de pensamento como o isolamento do ser humano face à religião, não fará com que essa estrutura deixe de regular o pensamento e o comportamento da sociedade contemporânea.
Genericamente, estamos perante um falso renascer cinematográfico assente na adição de novas temáticas sem mudanças substanciais na forma e técnicas. Quer dizer, acrescentar questões de popularidade recente (como o género, orientação sexual ou emancipação feminina) pode pouco acrescentar à história do cinema, apenas enriquecer a sua capitalização através da crença e seus novos oponentes.
Depende da arte do cinema e os seus precursores que caminho tomar relativamente a estas consciencializações na teoria de autor. Nesse sentido, não será vantajoso olhar para o cinema como um elemento de ativismo gestual e auto-referencial. Fazê-lo seria limitativo e, além disso, disperso da historiografia do cinema.