“O Primeiro Homem na Lua” – Absolutamente Solitário

"O Primeiro Homem na Lua" (2018) "O Primeiro Homem na Lua" (2018)

Há algo de absolutamente solitário em cada homem. Quanto mais socializado e socializável, tão maior a ânsia e até a necessidade de estar-se sozinho, em perfeita solitude, longe dos outros, apesar dos outros. Para quem foi escolhido para ser representante, até mais do que um só país, mais até da Humanidade, Neil Armstrong (Ryan Gosling), aparenta ser o mais solitário (por temperamento e por natureza) dos homens.

Enquanto filme que pretende mostrar o reverso do fotogénico, indo ao encontro do fugaz histórico, este “O Primeiro Homem na Lua” é o espelho do não-visto e do não-contado, mas sobretudo do não- exposto. Do brilho dos grandes atos e das coisas a ficarem escritas nos livros de História (quer sejam celebradores e definidores ou escolares e ensinadores), não fica registado o mais pequeno e o mais íntimo: as mundanidades do ser-se sobretudo a pessoa por detrás da figura mitificada e imortalizada. Antes de Armstrong, ou perante Armstrong, estava Armstrong a ser Armstrong.

Na sua maneira de ser controlada e no autodomínio merecedor da permanente alta tensão e do elevado batimento cardíaco, o que Damien Chazelle e Ryan Gosling constroem é uma tentativa de reenquadrar e refigurar o arquétipo-Armstrong: calmo, calculista, impassível, frio. Claro é que todas essas facetas estão visíveis e surgem ao longo de todo o filme. São elas, afinal, as características do maquinal que o “grande fazer” necessitavam encontrar num homem destinado a ser um “grande homem”. Somente alguém com a presença de espírito e a calma de Armstrong conseguiria fazer descer o X-15 para a Terra depois daquele ter rebatido na atmosfera e subido para o espaço; ou ter a percepção de qual seria o momento derradeiro em que teria de se ejetar antes do seu Veículo de Treino Lunar se despenhar; ou, por fim, ter a sagacidade de procurar um local alternativo para a alunagem, já quando o combustível era pouco e, mesmo assim, pousar suavemente. Não se fala disso neste filme, ou melhor dito, apesar disso ou por causa disso, fala-se antes do emotivo, da sua verdade e da dificuldade em comunicar. Porque Armstrong, assim não o parecendo, sente. E sente profundamente. Aliás, só como se pode sentir por trás de uma face marmórea, concentrada, focada e impenetrável. O que ele sente, nunca fica realmente dito, antes expresso na ambiguidade do que nunca pode ser percebido se não vocalizado e explicitado. Este Armstrong é um Armstrong que tem que ser descodificado, apreendido, destrinçado.

Ele é um homem de silêncio. Comunicador do essencial – a comunicação do essencialmente preciso é fundamental em engenharia e ele é um engenheiro de formação e tudo quanto é a exploração espacial tem a ver com o engenhar de novo métodos técnicos – ele tem a maior das dificuldades em entregar o eventual, o incomunicável que sai do entorno mais profundo do seu ser. Até as suas tiradas de maior graça têm um componente de cientificidade e técnica. O jogo difícil é o de tentar perceber, pelo silêncio, o que ele possa ter dito ou possa querer dizer.

De tudo o mais que ele não diz, o que mais assim o é a vocalização da perda. Para um filme acerca do grande atingir e do derradeiro conseguir, ele tem como um dos seus mais maiores temas a perda: para se alcançar algo, tem que se perder um outro tanto, bem mais importante, bem mais valioso. Para além do desaparecimentos de amigos pilotos, o que Armstrong mais carrega de doloroso em si é a perda da sua filha Karen Armstrong (Lucy Stafford). Porque entre os dois havia a presunção de um silêncio muito próprio, o de se estar com o outro, em paz e em amor, na placidez da certeza de que um pai abraça a sua filha e uma filha se sente segura nos braços do seu pai. E tudo para que depois tudo se acaba e se perca. A impossível fragilidade de Armstrong só assoma nos momentos de memorização da sua filha morta. Vê-a (recorda-a ou revive-a) numa série de tempos e espaços, sem nunca falar sobre ela, como se o momento de sublimação só pudesse ser atingido da forma mais absoluta: através da re-espacialização desse lugar-tempo de dor, transplantando-o da Terra para o ainda mais externo e alto, a superfície da Lua. Aí, e para além da frase histórica e efetivamente imortalizadora, o que mais lhe interessa não é esse “momento grandioso”, mas sim um momento absolutamente íntimo e absolutamente solitário, tido em afastamento de todos os outros, para assim deixar cair a bracelete da filha numa cratera. Promessa talvez urdida nas também solitárias conversas de si para si, nunca comunicadas aos outros, mas ali cumprida, na solitude de um pai a lembrar e a levar algo de uma filha partida, para ai deixar, num lugar outro – novo para todos e dele para sempre ser a primeira poeira varrida – um signo simbólico do humano que nos faz: o da dor da perda, que assim se faz (talvez e esperançosamente) aliviada no valor que damos aos instantes e aos objetos que tanto querem dizer porque lembram caras, sorrisos, um amor inabalável, fundidos numa homenagem sentida, calada, só de quem a faz, porque assim sentimos. No vácuo, na atmosfera finíssima, sente-se. Assim o faz Armstrong.

Resta o mítico, com certeza. A figuração do homem de grandeza histórica. A criação do heroísmo inabalável. O que todos reconhecem, o que todos lembram, único no que fez, único no modo como o fez. O primeiro homem na Lua. O primeiro homem a nela caminhar. O primeiro a olhar para a Terra de um outro planeta. Para ele foi muito mais do que isso: foi um momento solene de memória e veneração. Ninguém viu, só ele o sentiu. A História não conta o que de tão próprio cada homem só faz para si e em nome dos seus. Para a sua Karen. Talvez seja isso mesmo que ele afirma a Janet Armstrong (Claire Foy), no silêncio da cena final, como se, nada dizendo para o outro lado do vidro, antes ao lhe estender a mão, lhe comunique da forma que o sabe fazer, pelo olhar que se tem que compreender: sim, lá em cima, lembrei a nossa filha, esteve comigo e eu com ela. Dela deixei o que dela guardei. Não há sentimentalismos aqui: tão só o amor de um pai, tão humano como todos os outros. Lá em cima, como cá em baixo.

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