A morte não está no quarto ao lado. Nele, nada há, a não ser a lembrança de quantos futuros de vida as mortes imensas sempre tiram. O quarto não avisa, nem esconde, o quarto é aquele em que a escolha se faz, onde o momento derradeiro é já aquele que vem a seguir , é o que é agora, é o que está para ficar esquecido, porque quem o escolhe como o final, só o conhece ele ou ela própria, é só seu, e de mais ninguém, é uma do se ser no não ser que é um tão ser: o de ser a da morte de si como uma escolha de si. Martha (Tilda Swinton) assim o decide. A decisão é o ato maior , é não esperar pela morte, mas antes tê-la perante o olhar , seguir o caminho que leva até ela, mas pelo atalho da definição do dia do desvanecimento final. Escolher a escolha, decidir a decisão, morrer a morte, dizer o dia, ter uma hora. Enfim, ter a vida nas mãos, pelo ver de que a morte não terá outro estado que não seja o de chegar, mais cedo do que se queria, mas a vir.
Sem moralismos, sem moralidades. Para lá do que se possa dizer – a favor da vida sempre, a favor da eutanásia como um escolha, duas concepções e dois humanismos de lados diferentes e de percepções bem diversas de como olhar para a fragilidade do humano – um filme sobre a morte nunca pode ser uma celebração, tem que ser , a todos os momentos, um algo inquietante e duro de se ver , porque a ninguém se clama a vontade de morrer , nem a alegria da doença. Quem vive, quer continuar a viver , quem se sabe como vindo a morrer , se vê cortado de um futuro, o de continuar a olhar para as coisas do mundo. Quem vê o que Martha vê, olha-se igualmente, que esse dia nunca chegue e que nunca se veja perante a morte impendente.
Se o filme de Almodóvar é provocativo é porque o nunca quer ser , é porque nunca pretende ser moralista, nem definir um ponto de vista – quanto mais, ficam expressos, ao longo do filme, os que são a favor e os que são contra o ato da eutanásia – mas antes olhar para o que é aquilo que vai ficar a faltar, a vida que se queria viver , o modo como ela se vai indo e a forma de encarar esse ir-se. Falando acerca dela, de como é isso de se estar a morrer , de como a doença vai tirando as faculdades apreciadas, os gostos mais queridos, os atos mais importantes. Se Martha já não consegue escrever , ela fala sobre como é isso de não se conseguir escrever mais. Faz dela uma personagem forte, terrivelmente forte. Sofre, sofrendo, morre, morrendo, descreve, falando. Pois este é um filme do falar e da palavra, da importância do dizer e do contar, do olhar para as memórias significativas e de como o discurso é uma forma de repensar o que foi vivido e o que foi contado.
O arquitetar de um passado é o desenhar de um novo presente, pelo modo como se é dado a conhecer , pela escolha do modo de contar , o que os outros não sabem. O encontro primeiro entre Martha e Ingrid (Julianne Moore) é tudo menos sombrio, quando tudo o teria para ser , é antes o reatar de uma velha amizade que tem que ser reenquadrada pelo necessário rever das histórias que não haviam sido contadas, o olhar para trás que energiza o percurso de vida de Martha e lhe substantiva as escolhas tidas, tal como foram acontecidas. Daí que a escolha pela eutanásia, ainda que vinda da desilusão de que a vida já não poderá ser salva, é também decorrente da sua forma de ser , da substantividade que ela chama a si mesma: a de poder continuar a ser , afinal, ela própria. O contar de alguns aspetos da sua estória de vida clarificam a sua perspetiva perante o que a espera.
Como não pretende ser definidor de uma linha “correta” de pensamento acerca do que é escolher ser-se o dono da própria morte, o filme posta-se no difícil equilíbrio de ser duro e doce ao mesmo tempo, pois a quem não queira assim ver mostrado o ato e se sinta incomodado – religiosamente e na fé professada – com o propósito temático, não poderá, apesar de tudo, deixar de acompanhar a força de quem quer , também, não chegar ao ponto do definhamento total, de um corpo que só alimenta um cancro que dele se nutre, matando-o aos poucos. Só tem que ter essa escolha quem é acometido pelo mal da doença, só não tem que escolher quem não sofre com ela. De tudo o resto, ficam os ditos e os opinados, mas nunca mais do que isso, ao outro o que ele encontre, com a força que ele próprio e o que ele acredita – Deus, não-Deus, a sorte, a falta dela, o destino, a indeterminação – lhe possam dar. O respeito acima de tudo, por quem esteja perante o tema maior deste filme: a vida vai acabar mais cedo do que esperávamos, o que fazer , como esperar pela morte, como viver os últimos dias? A resposta de Martha é só uma, de entre as muitas tidas por quem se vê cortado desse tempo de vida.
Mas enfim, há o cinema. Clássico, dado à conversa, à cor , ao espaço da casa, aos filmes antigos. Ainda que se diga que o filme não se queira postar como melodramático – e Almodóvar é um exímio cultor e realizador do melodrama contemporâneo – é nesse classicismo do plano médio como aglutinador do diálogo e da conversa que “conversa” que ele também se afasta de ser pregador e ditador de tendências bem pensantes. A um certo momento, já após a morte de Martha, o filme toma uma forma hitchcockiana: o surgir da sua filha Michelle (Tilda Swinton) refletida no espelho retrovisor , ascendendo no plano, é como um renascimento, pela figura igual, de quem estava partida. É esse classicismo que resgata, pela forma, um cinema que pensa no mostrar , que não diz, que não prega, mas que é, para quem o sabe fazer e para quem sabe ver , cinema a ser cinema. Morta, pode então Martha viver uma segunda vez? Sentada na espreguiçadeira, Michelle é a imagem da mãe, a sua continuação, nela Martha prossegue, corpo dela, dela corpo descendido, corpo contado, corpo querido. A vida continua.