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“O que Podem as Palavras”: o poder e o amparo da literatura

O Que Podem as Palavras (2022), documentário de Luísa Sequeira e Luísa Marinho O Que Podem as Palavras (2022), documentário de Luísa Sequeira e Luísa Marinho

À data usufruo da liberdade de poder escrever, livremente e sem rasura de censura prévia, as palavras que procuro que cheguem até si, leitor(a), e nessa distância entre nós inscreve-se a circunstância nacional de, em média, em cada quatro vítimas de crimes de violência doméstica, três serem mulheres, a esmagadora maioria das tarefas domésticas e de cuidado dos filhos estarem a cargo de mulheres, e é a mulher que se encontra em desvantagem salarial ao desempenhar a mesma função que o homem, o que faz com que nós, mulheres, estejamos mais expostas a partir da maioridade ao risco de pobreza material.

À data de 1972, aquando da publicação da obra “Novas Cartas Portuguesas“, a circunstância nacional que separava quem escrevia e quem lia era, certamente, distinta, e muito porventura em função da sua própria inscrição, sentirá essa distinção como uma evolução conquistada ou uma enorme frustração do ainda a conquistar. Em qualquer uma das disposições do espírito, o caminho faz-se, tal qual as Cartas.

Para o exercício de conceber a distinção entre o nosso tempo e o tempo das “Novas Cartas Portuguesas” damos mãos às realizadoras Luísa Sequeira e Luísa Marinho, e escutamos atentamente (a única e para sempre) Ana Luísa Amaral, a fim de descobrir “O que Podem as Palavras” (2022) criadas por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, e Maria (de Fátima) Velho da Costa.

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O sentimento de frustração, do caminho ainda por fazer na conquista da liberdade e da igualdade, consubstanciou-se, para a realização deste filme, na ausência e negação de apoios à produção (Anexo 82), denotando, ainda mais, a urgência e pertinência em não fazer desaparecer os cravos que nos acordam para a Revolução e para a salvação, ainda hoje, das democracias frágeis, pelo que tardou, mas estamos perante a recolha de testemunhos em primeira voz, intercalados por uma animação-denúncia (o que nos fez lembrar “O Teu Nome É“, de Paulo Patrício), e a leitura de excertos da obra.

Se, no início do passado século, o uso do pseudónimo ainda protege e promove a escrita feminina, a aurora da Revolução dá lugar ao exercício da perda da autoria. As três Marias não se escondem por detrás de outros nomes, antes fundam-se numa autoria única, que torna impossível a distinção entre onde começa a Maria e onde acaba a Maria-outra, abdicando portanto da exclusividade individualizadora da criação, algo que poderá ser impensável para conseguir fazer juntar três notáveis homens. Dedicadas a atribuir toda a notoriedade à sua própria condição e ao poder de escrita, as Cartas tornam-se numa sublime reunião de estilos e tipos de textos literários (que vão desde o género poético, ao epistolar), pois que o corpo e a fala femininos são múltiplos, diversos e densos.

Conscientes de que “há sempre uma clausura pronta a quem levanta a grimpa contra os usos” (Barreno / Horta / Costa 1971: 13), na medida em que as Cartas são Novas face às Cartas escritas, no século XVII, pela Mariana Alcoforado, ela mesma enclausurada no convento por ordem do pai (e traduzidas por Eugénio de Andrade em 1969), as três Marias são alvo de censura pela Polícia dos Costumes que decreta o teor da obra imoral e obsceno, arrastando-as para um processo crime de ofensa aos costumes e à moral vigente do País (também este enclausurado pelos limites de Deus, Pátria e Família). A obra, que não é assumidamente feminista, mas cujo posicionamento face ao feminismo, à homossexualidade, e à sexualidade conduziu mais tarde à inevitável discórdia entre as três escritoras, assume-se enquanto gesto político de revolta, sem que todavia pudesse ter havido uma condenação política da publicação (que vê a luz do dia graças à direcção literária da Natália Correia na chancela editorial Estúdios Cor). É sempre a ordem moral (tal qual a Ordem Moral” que enclausurara Maria Adelaide) que impera na manutenção dos regimes autoritários e ditatoriais, ordem essa ditada pelo incómodo masculino em ver-se retratado como aquele que afrouxa os papéis sociais e sexuais das mulheres.

Os acordes da guitarra da banda sonora do filme aguçaram-me a vontade de protesto, pois abandonei uma sala de cinema demasiadamente feminina na sua audiência, e é preciso que os homens nos acompanhem na luta feminista, e com o lamento triste de saber que a demora de apoios para a realização do filme impediu a Ana Luísa Amaral de assistir ao produto final. Votos de que o visionamento próximo de “Les Trois Portugaises” (Delphine Seyrig, 1974), nova oportunidade para recordar o eco internacional da perseguição às três Marias (e que muito contribuiu para a sua absolvição), seja mais plural e insubmisso (cf. programa aqui).

Jamais seremos absolutamente imunes às forças do silenciamento e às amarras ditatoriais, todavia, todas as palavras que fazem um caminho, alcançam, inevitavelmente, o seu destino: “ramificação oculta que transportamos na voragem de nos sabermos, de nos descobrirmos, na viagem que premeditadamente empreendemos através de nós próprias na procura ou na entrega” (Barreno / Horta / Costa 1971: 14).