Depois do artigo do Cinema Sétima Arte [ler aqui], o produtor João Figueiras contactou-nos para expor a sua versão dos acontecimentos que levaram ao limbo de “Alfama em Si”, projeto musical de fado, filmado inteiramente em Alfama, após as declarações do realizador Diogo Varela Silva.
O filme tem direção artística do cantautor José Mário Branco (1942 – 2019), contando com as participações de Celeste Rodrigues (avó do realizador e irmã mais nova de Amália Rodrigues) Camané, Ana Moura Katia Guerreiro e Rão Kyao, que depositam a alma musical ao lado de atores como José Raposo, Márcia Breta, Isac Graça, Pedro Caeiro e São José da Lapa.
João Figueiras tem no currículo produções como as de Miguel Gomes (“A Cara que Mereces”), na altura pela O Som e a Fúria (produtora que fundou com Sandro Aguilar), e já é estabelecido na Blackmaria com filmes de João Pedro Rodrigues (“A Última Vez Que Vi Macau”, “O Ornitólogo”) e de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”). Em relação a Diogo Varela Silva, referiu que cooperou com o realizador durante vários anos. O produtor mencionou o “Fado da Bia”, em 2012, o qual produziu, e ainda a coleção de CD/DVD dos 90 anos da Celeste Rodrigues (em 2013). “Eu paguei tudo e na altura foi lançado pelo Museu do Fado.”
Sobre o processo que o próprio define como “complexo” e “conflituoso”, Figueiras revelou inicialmente a sua intenção: “Isto é uma situação inédita no cinema português e eu estou a tentar resolvê-la da melhor forma possível e estou pronto a defender o filme. Ele está pronto e foi entregue ao ICA, só que, neste momento, o ICA quer mo devolver. Criou-se um embrome legal e uma data de entrega, pelo qual pedi uma promulgação, dentro dos prazos legais, mas o ICA julgou que não mos podia dar. Como tal, entreguei o filme no dia 8 de março de 2019, sendo que o ICA entendeu que só me dava promulgação até outubro de 2018, pelo que eu não aceitei.” Frisando que “tudo aquilo que digo, posso provar” e acrescentando em relação aos prazos estabelecidos e promulgados pelo ICA: “Porque é que no meu caso não foi concebido essa promulgação?“
Mas, voltando ao início, tudo começou em 2015 quando o filme concorreu e ganhou o concurso de primeiras obras do ICA. “Se não fosse a Blackmaria, não teria ganho.” Conseguindo, assim, o 4.º lugar na atribuição de fundos, após ter ficado em penúltimo em concursos anteriores. “Mas como os júris estão sempre a mudar, ficámos em quarto.”
Já sobre a rodagem, Figueiras salientou que havia pactuado com Diogo Varela Silva um contrato “arriscado” devido à ambição do projeto em relação aos apoios conseguidos: “Tivemos um contrato obrigatório entre produtor e realizador, mas decidimos fazer diferente tendo em conta a natureza do projeto. Eu colocaria a minha parte e ele a dele, e, assim, arrancaríamos a rodagem. Era uma estratégia arriscada porque estávamos a aguardar os apoios da câmara, que não sabíamos se receberíamos ou não, assim como os da NOS. (…) Esse contrato que tínhamos entre nós, ele desvirtuou porque queria ser produtor e posteriormente já não queria.”
“As rodagens terminaram em outubro de 2016, tendo terminado a pós-produção de imagem em março de 2017 e foi a partir daí que as ‘coisas’ começaram a deteriorar.” O produtor mencionou a intenção de Diogo Varela Silva em “enviar” o filme para o Festival de Cannes desse ano, sendo que o evento, como é habitual, decorreria em maio, o qual iria comprometer com a pós-produção musical sob o comando de José Mário Branco. João Figueiras relembrou que para esta etapa do projeto havia adquirido os músicos que o cantautor pretendia trabalhar, a “nata da nata (…) os melhores músicos de fado da atualidade”, que apenas estariam disponíveis durante 10 dias em maio. Contudo, a agenda seguiu avante com Mário Branco a gravar no Ocean Blue, em Oeiras, “um dos melhores estúdios da Europa”. Os músicos reunidos compuseram a música final e ainda retocaram as suas performances musicais. O produtor sublinhou que todos os momentos musicais do filme foram concretizados ao vivo (“em som direto”) sem o recurso ao playback.
“Agora, o que acontece aqui? Há um ‘tipo’ que aclama que a versão entregue no ICA não é a dele. Mas não existe outra! Aliás, não há material suficiente para existir outra. (…) E é através disso que ele pressiona o ICA, e eu fico com um filme parado, com um contrato assinado com a NOS. Ou seja, tenho um filme pronto para estrear e não consigo. E isto é acima de tudo uma falta de respeito para com as pessoas envolvidas, e, como sabe, algumas delas, nomes maiores do Fado.”
Quanto à posição do ICA, João Figueiras acusa a instituição de albergar “relações muito promiscuas entre algumas pessoas”, dando o exemplo dos advogados de Diogo Varela Silva. “Ele surgiu com um advogado que não sabia bem o que estava a fazer, entretanto entra em cena outro, que não era nada mais nada menos que José António Pinto Ribeiro, que foi o nosso Ministro da Cultura entre 2007 a 2009.” O produtor prossegue nas ligações: “Luís Chaby Vaz, o atual presidente do ICA, foi chefe de gabinete de José Pinto Ribeiro, enquanto Maria Mineiro, vice-presidente do ICA, foi a principal assessora do também José Pinto Ribeiro. (…) Isto já foi dito por mim em tribunal, o que acontece é que há aqui uma promiscuidade, uma forma obscura na maneira como se está a tratar o assunto, provavelmente não tendo nada de relacionado com o filme em si, mas que adquire contornos sombrios.”
João Figueiras remata: “É inédito o ICA querer devolver um filme e ainda mais, querer que eu devolva os 450 mil euros que o projeto recebeu do concurso.”
Questionado sobre os pagamentos em falta, o produtor admitiu ao Cinema Sétima Arte existir algumas irregularidades, mas “nada de grave, e que não possa ser resolvido”. Voltando a defender-se que “todo esse processo foi travado pelo próprio Diogo. Ele minou, e impediu que esses pagamentos em falta fossem saldados. (…) Graças a ele, o ICA rescindiu contrato comigo, levando com que várias pessoas, sem terem envolvimento algum com isto, fossem impedidas de receber.”
Ainda sobre o processo judicial, o produtor disse ainda que Diogo Varela Silva lhe pôs uma “ação de insolvência, julgo eu que isso foi estratégia do José Pinto Ribeiro, para que ficasse insolvente e assim ele teria a posse do filme. Só que ele perdeu a primeira estância e no recurso que fez para a relação.”
Já sobre o filme, João Figueiras demonstrou orgulho no projeto, mencionando o trabalho de todos. “Não existe nada como isto no cinema português (…) É um filme digno e, se for bem promovido, não digo que será um novo ‘Variações’, mas poderá ter público. Não é certamente um filme para Cannes, tem como objetivo ser visto pelo público e não por festivais de autor.”