No seu filme “O Rapaz e a Garça”, Hayao Miyazaki reflete sobre a necessidade de resolução pessoal, a passagem das idades, a religação familiar, a perenidade da memória, as relações construtivas da individualidade e a temporalização enquanto forma de junção de posturas e experiências de crescimento pessoal.
O início funesto: por entre o escuro da noite calada e cortada por um crepitar estranho e anunciador da desgraça, acorda para um novo mundo (de condições que hão de vir) o jovem Mahito Maki (Soma Santoki) desperta do seu noturno sono sem sonho, corre pelas escadas acima, para daí ver, suspeitar e ter certeza depois, de que o real pesadelo que vê é efetivamente brilhante, demasiado brilhante, cegante e laranja, um fogo sem fim, esbatendo riscos e riscando o ar, levando a sua mãe por entre o flamejo, não alcançada, não salva, para sempre perdida.
O cenário terrível: a guerra. Ela que não é cega, que a todos esfuma e que mais ainda virá a vaporizar, já que o grande incêndio instantâneo e atómico, o absolutamente letal terror tecnológico que chegará durante o tempo do filme, mas que por ele não será visto, é aludido pela violência e clareza terrível de um fogo que avisa mais do que só a tragédia familiar, mas igualmente a nacional, e talvez por isso, a coisa-filme se afaste do citadino, logo no seu início, dos fogos que se incendeiam até que uma grande fogueira acenda tudo de uma vez só e se apague no instante seguinte, para só deixar as cinzas que Miyazaki escolhe não mostrar, os escombros do real, ou o real em escombros que só pode ser enganado pelos mundos outros, sinais de vida nos lugares de morte, espaços que ainda servindo para a construção das máquinas de guerra (a fábrica deslocada da família Maki produz material bélico), são também lugares que possibilitam o espaço-sonho e o espaço-fantasia, ou mais ainda, o espaço-outro espaço, tão impossível de ser como tão possível de ser enquanto a sua impossibilidade de estar ali, do outro lado das portas que perfazem os saltos entre tempos e locais que não se podem acreditar, mas que, no entanto, só se acreditam se vistos e experienciados.
O crescimento necessário: na linha entre a infância e a pré- adolescência, Mahito perde assim a mãe. Se a viu em pensamento, não se sabe, embora uma memória surja durante o filme, uma mulher que o chama, cabelos de fogo, com certeza é Hisako, forma- corpo sem começo ou fim, antes uma voz necessária para a premente construção de um rapaz feito sem infância, quando dela já se estando a sair. O que mais ele precisa é a resolução, ser-se quem seja poder ser quem se possa ser, ele que não pôde ser criança, porque já não o era, mas que também não pôde ser um simples jovem, pois o choque foi demasiado desequilibrador. Não a passagem de idades como o ultrapassar de qualificações etápicas, não de rapaz a homem, mas de vazio a mais completo. A equalização entre resolução e redenção só pode ser realmente sua: salvar a mãe foi o que não conseguiu fazer, resolver-se a si mesmo só o pode alcançar através de um ato posterior, o salvar da mãe e redimir-se de o não ter conseguido anteriormente, e assim se resolver autonomamente, novo de si mesmo, na certeza de foi digno de ser filho de alguém. A sua tristeza vazia, tão notada quando cai na cama, pronto a re-sonhar o mau sonho do relembrar a morte da mãe, é a da óbvia orfandade – o pai Soichi Maki (Takuya Kimura) é um grave homem de ação, não dado aos sentimentalismos da memória, antes à materialidade, à produção e ao avanço sem olhar para trás – sentido de perda, falha e esvaziamento. O que falta tem que ser preenchido, e embora isso lhe seja oferecido, na forma de uma nova família, a da sua tia Natsuko (Yoshino Kimura) como a sua nova mãe – irmã muito idêntica fisicamente a Hisako – casada já com Soichi e esperando o seu brevemente a nascer meio-irmão. Mahito tem que resolver encher esse vazio com Natsuko e a nova-outra família ou não, com o salvar-se a si mesmo com o salvar da mãe ou não – ter uma outra é esquecer a primeira? – ou um misto das duas escolhas: salvar a mãe ao salvar a tia sem deixar deslembrada a primeira mas também como forma de aceitar e amar a segunda. Mas, como e de que modo?
Entre-mundos: a Garça Cinzenta (Masaki Suda) liga os mundos e os domínios, é animal e é homem, é bela e é grotesca, é impossível aliada e verdadeira amiga e ao início é tão intempestiva quanto graciosa e tão elegante quanto gritante, é ela que o chama ao chamamento da mãe – o que é mais real que não a possibilidade de, no sonho incrível, se poder criar um novo futuro que re-inclua o que se perdeu no passado? – é ela que o leva à Torre que é túnel- entrada que o leva ao outro espaço, o outro sítio, estranho e fronteira, e daí para um outro mundo – líquido como o corpo liquidificado da mãe que não era – a que Mahito tem que aceder, porque necessita de ver. O mundo abaixo é um do passado feito como presente. Esse seu presente é o antes do mundo mais acima. Abaixo, Himi (Aymion) é a Hisako a ser, Kiriko (Ko Shibasaki) é a jovem mulher a ser a Velha Kiriko do mundo cimeiro (não há escalonamento, antes a diferenciação: o que no primeiro se faz, eventualmente se refletirá no segundo). É um mundo de mar e pelicanos, periquitos e Warawara’s que ascendem e nascem no mundo terreno, é um céu que se liga a uma terra, mas tão estranhamente imperfeito, ainda que não tanto como a Terra que alimenta, porque não há nele – ainda, pelo menos – a máquina maligna do metal incandescente e do fumo fabril. Como se um domínio de família se tratasse – e assim o parece ser – no seu centro está o Tio-Avô de Natsuko e Hisako (Shoei Hino) – e óbvio antecedente do próprio Mahito – o arquiteto de um mundo-domínio aparentemente alienígena, alimentado pelo poder construtor de uma pedra flutuante que é capaz de se ligar à mente de um criador e fazer mundos feitos de azul e verde, águas e animais-humanos. A escolha é então a de se poder ser, a resolução de ser: a Mahito é dada a hipótese de manter a criação a ser constantemente criada, de ser o novo construtor e o novo demiurgo, o mantedor de uma paz e de uma hierarquia que entretanto se presta a tornar-se diferenciada e autonomizada. O mundo animista e natural não é feito de ferro e bombas, mas tem as suas próprias tensões, que assim o não distinguem do mundo de que é alternativa. As guerras são abaixo como são acima. As pedras de brincar que se seguram tão perto de se desmancharem são a manifestação da potencial falta de equilíbrio ou a materialização, a qualquer momento, da sua futura quebra. Deverão elas cair por si ou pela malícia que quem as as queira fazer tombar? Quando o Rei-Periquito as corta ao meio, na sua tentativa de usurpar o poder, tudo se começa a desmoronar, esse mundo que se corrói em volta de si mesmo, em direção de um novo nada a iniciar e de onde um novo tudo se irá construir (eventualmente, um dia, sob outra forma, num outro filme de Miyazaki?). No que a Mahito toca, ele que não quis ser o novo criador porque se achou manchado da malícia que nunca teve, está ele já resoluto, resolvido, transformado, crescido, renovado.
Pelo amor: já chamou de “Mãe!” a Natsuko e ela também como um filho o aceitou. Podem assim regressar ao mundo acima. Os tempos unem-se. Por portas diferentes, os tamanhos confluem, os normais de cada mundo equivalem-se e reequilibram-se, reencontrados. Mahito salvou a progenitora (e assim deve ficar acreditado) na escolha do amor a dar à tia que, por sua vez, se fez totalmente como sabedora de se ser a sua nova mãe.
Na lembrança: não esquecida, para sempre lembrada na face, corpo e modos da tia, ou na memória da vivência de uma mãe que foi nova e amiga antes mesmo de o ter feito nascer de si, os mundos são assim mesmo, confundem mas ligam, e Mahito poderá sempre reencontrar Hisako em Natsuko ou em Himi relembrada, nada se perde realmente, antes se transforma, na estranheza dos mundos impossíveis.
O fim esperançoso: o tempo da guerra, acabado. O regresso à cidade, próximo. A família espera, no fim das escadas. Mahito termina os seus preparos. Sai do quarto. Fica o tempo. A luz entra pela janela, o silêncio que se propaga na abertura do espaço. Tudo o que se pode esperar é esperar que tudo possa correr melhor. O regresso é sempre esperança. O crescimento foi alcançado. A dor, pelo menos, apaziguada. O respiro é outro. O futuro se espera que também o venha assim a ser.

