A troca de sangue, enquanto bombeio permanente e fluidez constante é a função do coração. Fazê-lo correr é a sua forma de o renovar e refrescar. Essa é a sua atribuição clínico-corporal. O seu bater é cadência, o seu pulsar é continuação da vida.
As mãos que pegam nele, no início deste O Sacrifício de Um Servo Sagrado, são também clínicas, escorregadias, são luvas que cobrem a pele, recebem o fluido sanguíneo, retiram o órgão de um lado para outro, sangue para outro sangue. A brancura azulada que rodeia o coração ensanguentado e vermelho é a esterilidade que não preenche, se faz vazia e que esvazia e que só o sangue poder verdadeiramente encher com mais algo do que o maquinal cirúrgico com que Steve (Colin Farrell) tanto pega no coração como vive a sua existência metódica, banal, assombrada e vácua. Quando se tira o coração, a caixa torácica fica vazia.
Trágica comédia do trágico, o filme de Yorgos Lanthimos filma o sangue e filma os corredores, filma a longitude da paredes que fecham geometricamente e onde não parece haver espaço para a fuga. O hospital é mais prisão do que lugar que cura. Os seus emparedamentos recobrem e avançam sobre os corpos. Claustrofobias do clínico. É isso mesmo que Steve é: um claustrofóbico de si mesmo, apagado no método, na minúcia e na crença de um científico que nada pode fazer contra a maldição que contra a sua família lança Martin (Barry Keoghan). Razão e forma da maldição: se Steven matou o seu pai na mesa de operações, então terá ele que matar um dos seus ou morrerão eles, um por um, deixando de andar primeiro, parando de comer segundo, sagrando dos olhos terceiro e morrendo, por fim. Sangue por sangue.
Mas há algo de mais labiríntico que os leva a tal ponto. A insídia, a máscara, a perfídia, a vingança. Ao início, Steven é forma de culpa. Sabe ele que a morte do pai de Martin foi resultado da sua cirurgia aturdida pelos efeitos do álcool. Daí ter-se tornado – sem a sua família o saber – um protetor algo relutante de Martin. Este, por sua vez, pérfido e calculista, finge ter interesse na profissão de cirurgião, para assim manter-se próximo de Steven. Culpa e perfídia. Negatividade sobre negatividade. Daí que o sentido suspensivo e interrogante com que o filme começa não seja mais do que um outra “perfídia”, a do realizador que mantém a tensão em potência, não a desenvolvendo, mas sempre a potenciando, por meio de uma ambiência de estranheza. Há algo de errado com as conversas entre os dois, algo de latente, algo de mascarado.
Os movimentos de câmara, o slow motion, retém a respiração, fazem esperar, põem a perguntar: onde nos leva o filme? Na perfeição aparente, o filme leva-nos ao descentramento capitalista-científico. Nada pode escapar à maldição urdida e ao mau-olhado. A materialidade e a riqueza da casa suburbana de classe alta não se mantém em pé se nela se deixar entrar o animalesco mítico. O lobo que entra é insídia que já não mais e que deixa o(s) cervo(s) feridos só pelo seu olhar.
Os filhos de Steven, Bob Murphy (Sunny Suljic) e Kim Murphy (Raffey Cassidy) adoecem, os seus corpos falham, mas não estão realmente doentes, é a palavra-mal que os vai enfraquecendo, é a voz-animal e o olhar-animal que os debilita. Se nada é possível de ser anti-contemporâneo, no pós-sagrado e no pós- religioso, tudo tem que ser recentrado à lógica do mensurável. Como pode então acontecer o que está a acontecer às crianças e até a Anna Murphy (Nicole Kidman), a sua mãe? Não se pode lutar contra as palavras, contra a imaginação do mal. Daí que as imagens evocadas por Martin sejam do domínio do mítico e do fantástico e que assim tomem força do real. A ilusão-imagem é mandamento e consequência inescapáveis.
Nem mesmo o bater do corpo de Martin, o seu sangrar, fazem parar o mal. Preso na casa de Steven, mais ele afirma a corporalidade de uma ideia-imagem: eles vão morrer porque eu assim quero ver a acontecer. Um cinema do mal. Daí que a necessidade de sacrifício seja tão avassaladora. Ato tão primário e tão estranho à sociedade de consumo, onde tudo pode ser resolvido pela transferência-preço e não pela transferência-sangue. Tudo pode ser ressarcido por um ato comercial-simbólico em que um “algo” vale por outro “algo”, mas não pelo modo antigo do “sangue por sangue”.
A cena do sacrifício é toda ela um cinema-teatro, as personagens são conduzidas e dispostas em círculo – elas que estão já quebradas e fraquejadas – num ritual lento e pesado, do qual a câmara se afasta, se desprende, faz de coro. Steven está tão de olhos vendados como o estão a mulher e filhos. Roda sobre ele próprio, panorâmica de terror. Dispara. Não mata. Gemidos de horror. Roda. Dispara. Mata. Quem? O filho Bob, o qual estava já para morrer. Destino? Sorte reposta? Sangue transferido. Sangue pago.
Na cena final, Steven, Anna e Kim estão sentados na cafetaria. Martin entra. Câmara lenta. Olhares trocam-se. Vingança cumprida. Maldição terminada. Saúdes restabelecidas. Nada dito, nada falado. Martin sai. Neste cinema fabular de Lanthimos, é o sagrado mítico que se sobrepõe ao científico do moderno.