“O Salão de Música” – O Preço das Aparências

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“Nunca ter visto o cinema de Satyajit Ray significa existir no Mundo sem nunca ter visto o Sol ou a Lua” – Akira Kurosawa

Jalsaghar”, ou “O Salão de Música”, conta a história de um zamindar (termo usado para definir um proprietário de vastas quantidades de terra, que as governava, bem como aos camponeses que nelas residiam), de seu nome Biswambhar Roy (Chhabi Biswas). No salão de música do palácio onde vive organiza luxuosos eventos musicais, com os mais ilustres intérpretes, deixando a gestão do seu (cada vez mais diminuto) património para segundo plano – nem a abolição do sistema zamindari, que permitiu acumular riqueza a várias gerações da sua família, o parece incomodar. Esta obra baseia-se num popular conto bengali escrito por Tarasankar Bandyopadhyay, autor indiano indicado para o Prémio Nobel da Literatura em 1971.

Biswambhar Roy, um dos protagonistas, batalha contra a decadência da aristocracia em que se insere, e tenta a todo o custo manter a reputação nobre, passada de geração em geração, ostentando os já referidos eventos musicais. Satyajit Ray não escolhe lados – pretende apenas ilustrar a temática tradição versus contemporaneidade, num período em que a Índia atravessava importantes mudanças (o filme estreou em 1958 – oito anos antes, em 1950, os laços com a monarquia britânica foram oficialmente cortados). Contudo, no povo ainda está enraizada a ideia de tradicionalismo, olhando de lado para os chamados novos-ricos, isto é, pessoas cuja riqueza é construída pelos mesmos, e não “oferecida” por antepassados longínquos. Esta ideia é exemplificada pelas saudações que Roy recebe quando viaja no seu elefante, opostas aos comentários negativos que Mahim (Gangapada Basu) ouve quando viaja no seu carro novo.

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Ora, o patamar económico do zamindari é precário. A certo ponto da obra (no último e mais luxuoso sarau musical que organiza) gasta o que sobra das poupanças que estão no cofre, reservadas para serviços religiosos, aos quais dá pouca importância, apesar do olhar apreensivo do seu criado. O preço de manter as aparências não é só monetário (sem querer revelar demasiado… Quando assistirem ao filme certamente vão perceber esta referência). A música é a única coisa que parece dar alguma alegria a Biswambhar, e não é para menos. O filme contou com alguns dos mais conceituados artistas indianos daquela época. As peças musicais são, no mínimo, hipnotizantes, um verdadeiro baluarte da cultura musical da Índia. O “Salão de Música” atinge a harmonia entre actuação musical e todo o processo que envolve a imagem em movimento.

Então, se Biswambhar Roy é um dos protagonistas, quem será o outro? Nada mais, nada menos, que a própria música. Tal a importância do elemento sonoro nesta obra (não estivesse a pista no título), que se pode considerar a personagem-música como elemento-chave, pelo menos com importância igual à de Roy. Não posso deixar de comparar este “Jalsaghar” com um conto do escritor russo Ivan Turguénev, intitulado “Os Cantores”, onde o enredo gira em torno de um “duelo” vocal entre Iachka e um fazendeiro. Numa obra com dezassete páginas, o autor usa dez para descrever personagens (não os duelistas, antes os espectadores), o local onde se desenrola a ação e até os pássaros que ali se encontram. O coração de “Os Cantores” é o canto, mas a maior parte do tempo a nossa atenção é direccionada a conhecer as personagens.

Uma interpretação é que Turguénev, proveniente de uma alta classe social, procurava relatar acontecimentos e vidas rurais de um modo quase jornalístico e documental, o que resultou neste conto: uma observação antropológica do povo camponês russo, os mujiques. Neste filme de Satyajit Ray acontece algo semelhante. A personagem-música é a alma da obra, no entanto acaba por servir de veículo para o estudo de um estrato social aristocrata e decadente, o que resta de um sistema abolido, e da falta de interesse e adaptabilidade para inverter a situação.

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Numa primeira instância um filme deve ser absorvido emocionalmente, sem a preocupação de encontrar o significado de certo objecto em determinado plano – este é um exemplo entre vários que podiam ser apresentados. Creio que, enquanto seres humanos, atingimos o pico da nossa inteligência naquele exacto momento antes de procurarmos o significado da imagem projectada na tela. O processo de intelectualização pode, e a meu ver deve ficar para uma análise posterior (para aqueles que o apreciam fazer, claro está). Quem sabe, no dia ou semana seguinte, ou numa próxima visualização da obra. Acredito que, com esta visão, o cinema vai de encontro ao seu potencial máximo e atinge o seu principal objectivo: mostrar ao espectador um pouco de si mesmo e, por conseguinte, um pouco do mundo que o rodeia.

O próprio realizador mencionou, em entrevista, que gostava de abordar temas e situações emocionais simples, pois a sua crença era que as coisas simples são mais universais do que as coisas complexas. Nas palavras do escritor Charles Bukowski: “Um intelectual diz uma coisa simples de uma maneira difícil. Um artista diz uma coisa difícil de uma maneira simples”. Inicialmente realizador e argumentista, mais tarde operador de câmara, compositor da trilha sonora, responsável pela escolha do guarda-roupa, desenhador dos cartazes e créditos para os próprios filmes, com o avançar da carreira o autor indiano foi acumulando cargos e alcançou mais liberdade criativa. Pessoalmente, evito contribuir para a banalização de palavras como “genial”, “poético” e mesmo “artista”. Satyajit Ray planeava os seus filmes de um modo minucioso e, além do trabalho no mundo do cinema, era escritor (com tremendo sucesso no seu país), ilustrador de livros infantis… Em suma, um artista genial e poético, alguém que conseguia dizer as coisas difíceis de um modo simples e belo. E é este o maior dos objectivos que a sétima arte deve alcançar.

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