“As pessoas não cantam quando pedem sal num restaurante – porquê pedir às pessoas para cantar se não há razão para tal?’ ‘Porque não? Tornaria a vida mais agradável”, respondeu Demy.
Secessenta anos depois, os Chapéus de Chuva de Cherburgo voltam às salas. Desde o fabrico do “Bolo do Amor” em Peau D’Ane até à violência trágica de Une Chambre en Ville, o cinema de Jacques Demy atravessa uma longa linha que une o imaginário à realidade, a saudade à fragmentação, culminando num jogo de amores e desamores que nem sempre combina com os finais felizes dos contos de fadas. Podemos evocar uma saudade individual? Sem dúvida- não tivesse este universo pedaços da nossa infância, referências a La Belle et la Bete ou a Branca de Neve, que nos emociona como a primeira vez que sentimos um filme da Disney. Podemos evocar uma nostalgia de algo que nunca vivemos? Também. Miúdos e graúdos juntam-se no mesmo espaço, encarnando a peça final de uma aliança épica. O génio do nosso contador de contos une-se ao brilho musical de Michel Legrand, ao talento inigualável de Catherine Deneuve, Françoise Dorléac, Anouk Aimée, Michele Piccoli, de Jacques Perrin, Gene Kelly e Marcello Mastroianni inclusive, fascinando um público que sai da sala de cinema a cantarolar, sempre de braço dado com a criança que foi e o adulto que se tornou. É um cinema sentido, que funde as temporalidades numa só, tornando tudo o que o envolve num clássico intemporal. A conceção da sétima arte por parte do “Jacquot de Nantes” transcende o romântico, não se resume aos clichês do maravilhoso “em cantado”, chegando – ainda que subtilmente- a colocar um ponto de interrogação na cabeça do espectador.
Se há um fio condutor que une grande parte do seu legado é a musicalidade – mesmo que a obra não seja um musical propriamente dito. As peças do puzzle começam a juntar-se quando algumas das personagens saltam de um filme para o outro, carregando consigo uma melodia particular que já nos é familiar; uma experiência de vida que transforma o espaço. Pensemos no mundo de Demy como uma constelação, onde os Chapéus de Chuva são um ponto de passagem crucial. Esta centralidade que lhe atribuo não tem quaisquer intenções de colocar a obra num plano superior, mas sim de lhe conferir um valor simbólico que liga os pontos deste mundo. A última cena que cruza os destinos de Geneviève e Guy no inverno de 1963, ocorre na estação de serviço após o protagonista ter voltado do serviço militar e refeito a sua vida. Este encontro é o último ponto de passagem para que ambos prossigam com a sua vida. Há um passado que ficou, e um futuro já traçado, porém suspenso, presente na viagem de Deneuve com a filha. Os Chapéus de Chuva são como um ponto de passagem nesta reta. Há um antes e um depois. Destinos que se cruzam, personagens que saltam de Nantes a Rochefort, de Rochefort a Cherburgo. O nome Lola é mencionado aqui, posteriormente nas Demoiselles, sendo que a personagem de Anouk Aimée tem destaque num outro filme: Model Shop. Nantes de Lola não é a mesma de Une Chambre en Ville. Mesmo sendo o primeiro a preto e branco, é o segundo que, através de cores fortes e das canções agonizantes, carrega um peso extremamente dramático. Enquanto que na obra de 1961, Demy imortaliza a cidade com uma narrativa que gira em torno de um primeiro amor, em 1982 o encanto perde-se nessas mesmas ruas, entoado pela revolta de um operariado em luta na década de 50. Há quase um toque Shakespeariano neste contraste, uma ânsia musical semelhante à performance de “Queen of The Night Aria” na sua génese.
Jacques tinha catorze anos quando a II Guerra Mundial chegou ao fim, sendo a partir de aqui que o seu futuro no mundo do cinema começa a ser traçado. Portanto, não é de estranhar a presença da guerra no seu imaginário, que, de uma forma ou de outra, une estes mundos ao separar as suas estrelas. A particularidade de Demy que o torna tão atual, visionário e nostálgico é a sua ousadia poética. A crítica social está disfarçada na comédia, em contrastes exploratórios, experienciais, que não deixam de ser coerentes.
Há um constante diálogo sem limite entre as cores, os cenários, os sentimentos – algo que se tornou numa característica própria. Delphine e Solange estão associadas aos tons primaveris, cores pastel, ao amarelo, lilás e ao rosa. Gneneviève ao azul, a um amarelo e rosa intensos, à chuva e à neve. Edith é um dos extremos da matiz, caracterizada pela intensidade dos verdes, dos castanhos e dos vermelhos. Apesar da crueza de certas personagens, que por sua vez rompem com o sentimentalismo, não há aqui uma brutalidade masculina por parte do realizador.
No caso de Une Chambre en Ville, a agressividade e a masculinidade tóxica estão presentes na personagem de Piccoli, por exemplo, mas em filmes como as Donzelas de Rochefort, a figura do homem bravo é demonstrada não pela virilidade, mas por uma sensibilidade sonhadora. Este estado quase “encantado” e de uma essência (quase) baseada no “daydreaming” é o que torna a personagem masculina verdadeiramente atraente. É a arte, reunida em todas as suas vertentes – desde a pintura até à música.
Não podemos falar de Demy sem mencionar Agnès Varda, a cineasta que teve o seu próprio destaque tanto na Nouvelle Vague francesa, como na vida pessoal de Jacques. Varda faz uma homenagem ao realizador no filme “Jacquot de Nantes”, retratando a vida como só ela o sabe fazer. Neste tributo, Agnès, com o seu estilo próprio, devolve a cor às memórias de Demy num momento em que este se encontra doente, tendo falecido antes da estreia do filme. Eternizando os seus gestos, o seu rosto, de uma forma tão próxima, a cineasta conseguiu captar em tempo real algo fascinante: a saudade. Uma saudade associada à memória; a outra a um futuro que se revelou demasiado próximo.
Os olhares de Varda e Demy, ainda que únicos, dialogam constantemente entre si, atravessando gerações e gerações. Enquanto deles se falar, a constelação continua luminosa, o seu legado não se perde e as peças do puzzle continuam a completar-se.