«Ordem Moral»: a insanidade de querer “um quarto só para si”

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O filme «Ordem Moral» (2020) é realizado por Mário Barroso, distribuído pela Leopardo Filmes, com produção de Paulo Branco e argumento de Carlos Saboga, e apoio à produção da RTP, passou pelo Festival de Cinema de Tóquio e da Índia, representou Portugal nos Prémios Ariel no México, e foi um dos candidatos portugueses aos Prémios Goya em Espanha.

Conta a sinopse oficial: A 13 de Novembro de 1918, dois dias após o Armistício que põe cobro à Grande Guerra, num país mergulhado numa profunda miséria, no caos e na anarquia, Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira e proprietária do Diário de Notícias, desaparece do seu domicílio no luxuoso Palácio de São Vicente de Fora. O marido, Dr. Alfredo da Cunha, poeta, dramaturgo e director do grande quotidiano, apela aos leitores para que ajudem a polícia e a família a encontrar a esposa desaparecida. Está lançada a maior campanha moralista, vingativa e punitiva de que há memória. Pagam-se polícias e detectives e desencadeia-se a maior «batida» no território nacional. A caça à doida começou.

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Não imagino outro título tão perfeitamente adequado para o filme Ordem Moral, que conta a história de Maria Adelaide Coelho da Cunha (Maria de Medeiros), herdeira do jornal Diário de Notícias, internada à força por decreto do marido Alfredo da Cunha (Marcello Urgeghe), após um alegado envolvimento com o motorista, Manuel Claro (João Pedro Mamede).

É precisamente a “ordem” que coloca as coisas e as pessoas em determinado segmento, e é a “moral” que determina quem segue à frente e quem fica para trás nesse segmento. O início do século XX, em especial os anos vinte, parecia promissor quanto a colocar as mulheres num lugar de quem ordena, ao reclamar direitos laborais e salários iguais entre géneros, bem como em consentir o direito ao divórcio, e a frequência de alunas mulheres no ensino superior. Na senda das escritoras Maria Amália Vaz de Carvalho, Carolina Michaelis de Vasconcelos e Ana de Castro Osório, o início do século XX poderia ter sido um real reconhecimento da capacidade transformadora da Educação, através da instrução das mulheres, no combate ao analfabetismo, e na difusão da cultura e da democracia. É neste momento que Angelina Vidal escreve “Às Operárias Portuguesas”, e, mais tarde, “A Voz do Operário”. É Ana de Castro Osório, com a ajuda de Beatriz Paes Pinheiro, que funda a Liga Republicana das Mulheres, o que contribui para a elaboração do direito ao divórcio, entre outras conquistas.

Há demasiadas mulheres por conhecer que deram força ao movimento republicano e, sem elas, estaríamos ainda mais amarrados a uma monarquia oca e falida. Contudo, os militares fizeram questão de assumir o poder, e fizeram golpes para colocar em ordem uma tentativa de poder republicano ainda por limar, e António Salazar, desgostoso que as suas alunas de Coimbra pudessem ler Marx, quis colocar as finanças em ordem, e o país retrocedeu em todos as lutas democráticas, sociais e humanas que vinha travando. Aqueles que ousavam querer a Liberdade e a Justiça tiveram o seu lugar garantido na parte de trás do segmento da ordem moral. Maria Adelaide foi declarada insana. É preciso que a conheçamos, e o cinema aqui cumpre o papel de contar uma história de vida, que pode, hoje, ajudar a mudar papéis de género (somente pelo papel de contar, pois não incutimos à sétima arte nenhuma intenção ou obrigação moral).

No filme reconhecemos a conivência masculina em decretar como insana aquela que quer ser a vontade expressa de uma mulher, e as figuras que hoje preenchem a toponímia de muitas das nossas instituições, foram outrora Magalhães de Lemos (Jorge Mota), Egas Moniz (Dinarte Branco) e Júlio de Matos (Rui Morisson), médicos que decretaram o internamento forçado de Maria Adelaide, por enviesado desejo do seu marido. E no mesmo filme, reconhecemos a arte como sublimação, pois jamais qualquer regime opressor, de pequena ou grande ordem, aniquila, em absoluto, a capacidade de pensar por si, de tal forma que, aliado à ternura da sua mão que dá a mão às outras mulheres igualmente internadas no Hospital Psiquiátrico (Sónia Balacó), Maria Adelaide tem a bravura de ir contra o presságio das amarras da ditadura. Aqui é de salientar a combinação entre ternura e bravura, e a capacidade de metamorfose, tão características da actriz Maria de Medeiros, e que neste filme se faz acompanhar da música de Mário Laginha.

A ditadura instalada em Portugal forçou, a partir dos anos quarenta, o exílio de muitas mulheres brilhantes na produção literária e artística, como é o caso de Judith Teixeira, perseguida pela dimensão erótica da sua poesia, mas que António Botto e Raul Leal também escrevem, e quando Fernando Pessoa os defende publicamente, deixa a poeta de fora do seu manifesto, do mesmo modo que José Régio escandaliza-se com os versos escritos por Judith. São vários os homens incomodados, por manifesto ou ausência de apoio, com a conduta feminina, seja essa conduta amorosa, como no caso de Maria Adelaide, ou uma conduta contra a ditadura, como é o caso das escritoras Maria Lamas e Maria Archer, também elas exiladas em França e no Brasil, respectivamente.

Maria Adelaide da Cunha, não tendo fugido do país, não deixa de sofrer um autoexílio por parte da família e da sociedade que, na tentativa de lucrar com o negócio do Jornal, e em nome da manutenção da moral e dos bons costumes, não lhe dão o direito nem a liberdade de decidir por si. Em ditadura, estrangula-se qualquer possibilidade de liberdade, arte e expressão, pois àqueles que detém o poder, é necessária a existência de classes e géneros em desigualdade, por forma a manter a ordem.

Portanto, por muito que Maria Adelaide se disfarce para se misturar com os demais que carecem de ajuda, nas suas idas à parte pobre de Lisboa, ou que se metamorfose nos papéis que desenrola nas peças de teatro que gosta de apresentar nos serões de casa, a sua margem de liberdade foi tão limitada quanto aquilo que os homens de poder da época quiseram demarcar. Decretar insanidade, foi aqui modo para abafar a ameaça à ordem, sendo que Maria Adelaide não é «Doida Não e Não» (2018), numa alusão à obra de Manuela Gonzaga, e nem faz parte dos «Doidos e Amantes» (1954), numa alusão à obra de Augustina Bessa-Luís.

Mais de um século depois da Implantação da República, vale a pena reflectir acerca de quem detém o poder, e se esse poder garante uma genuína condição igual e justa entre géneros, ou se as Mulheres, na ilusão de que por terem mais direitos conquistados e garantidos, ainda não dispõem de um quarto que fosse delas, nas palavras de Virgínia Woolf.

Se, confrontada com a ordem moralizadora da sociedade portuguesa, Maria Adelaide jamais desistiu de sublimar o preconceito pela Arte, falta a Portugal um real confronto com a sua história, na tentativa de a escovar a contra-pêlo, como afirmou Walter Benjamin, e dessa sacudidela caírem os piolhos e as carraças que sustentam o nosso semblante subserviente e conservador. Apenas um forte carácter subserviente justifica a preferência pelos filmes nacionais em língua inglesa, em detrimentos dos filmes, como Ordem Moral que conta a história de vida de uma mulher, uma família e um Jornal portugueses, demasiadamente actuais. Falta cumprir contar a nossa História escovada, na incógnita de quantas mais Marias Adelaides estarão por retratar…

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