“Reavaliar a história sob os nossos próprios termos” — Foi assim que o então jovem e desconhecido realizador Todd Haynes se expressou em 1992, durante um painel de discussão em Sundance que se tornou célebre por tentar traçar um novo rumo para o cinema de expressão queer. Naquela época, a grande maioria das narrativas LGBTQ+ girava em torno de dois únicos tipos de personagens: gays afligidos pela AIDS ou caricaturas homofóbicas, como o vilão crossdresser de “O Silêncio dos Inocentes”. Desde então, muita coisa mudou. Três décadas depois, é seguro afirmar que nunca tivemos uma produção tão intensa de filmes com personagens LGBTQ+. Testemunhamos um impressionante aumento na visibilidade desses filmes, refletindo uma crescente abertura para narrativas autênticas e inclusivas, mas também capazes de explorar nuances e contradições.
O último ano, em particular, se sobressaiu pela abundância dessas experiências. Dentre estes 12 títulos destacamos dois filmes oriundos do Brasil, uma comédia desavergonhada com um toque Hitchcockiano, muitos filmes com nudez frontal e, em especial, uma cena envolvendo uma banheira que já se tornou num dos momentos mais icónicos do cinema recente.
Embora alguns destes filmes ainda não tenham tido o privilégio de estrear comercialmente em Portugal, convidamos o leitor a encarar esta compilação como um convite para explorar, em 2024, algumas destas expressões cinematográficas que moldaram e desafiaram a nossa compreensão do que é hoje o cinema queer contemporâneo.
12. The Summer With Carmen (Zacharias Mavroeidis)
Imagine um encontro entre a Greek Weird Wave e “O Desconhecido do Lago”. É assim que podemos descrever o terceiro filme do realizador grego Zacharias Mavroeidis, estreado em Veneza o ano passado na paralela Giornate degli Autori. Ele segue dois amigos gays na tentativa de criar um filme inspirado nos eventos em torno de uma cadelinha chamada Carmen, enquanto aproveitam o verão e um intenso cruising numa praia ao redor de Atenas. Antes de se lançarem na escrita do guião, estabelecem que o filme deve ser “divertido, sexy, grego e low budget”. Ao final, a missão é cumprida com sucesso.
11. Swallowed (Carter Smith)
Benjamin e o seu amigo hetero, Dom, decidem se arriscar numa oportunidade para ganhar dinheiro rápido, envolvendo-se com um grupo de criminosos liderado por Jena Malone. Durante a entrega de um pacote misterioso, as circunstâncias saem do controle dos rapazes e transformam-se num terrível pesadelo. “Swallowed” é um body horror sobre intimidade, amores não correspondidos e um pénis ereto gigante. Uma das mais inusitadas e improváveis surpresas do mesmo realizador de “Midnight Kiss”.
10. Sem Coração (Nara Normande, Tião)
No verão de 1996, numa praia de Maceió, Tamara experimenta um importante rito de passagem numa vila de pescadores. Lá, ela desenvolve um fascínio misterioso por uma rapariga mais velha que, segundo os rumores locais, vive sem o coração. Um belíssimo filme sobre classe e o despertar da sexualidade, expandindo-se a partir da curta homónima realizada em 2014 pela talentosa dupla de realizadores brasileiros. Uma visão poética e sensível de um amor de verão que marca a transição da inocência para a descoberta da vida adulta.
9. Opponent (Milad Alami)
Iman e sua família fogem do Irão, encontrando abrigo num centro de refugiados na Suécia. Ao iniciar uma nova vida com sua família no país europeu, ele decide juntar-se ao clube local de wrestling. Até que num belo dia, um encontro improvável com um desconhecido ameaça abalar toda a fachada da vida aparentemente sob controle que Iman construiu para si mesmo. Um filme tenso e devastador que explora a experiência de ser “o outro” quando se está longe de casa e sobretudo, sobre as consequências danosas da homofobia internalizada e institucionalizada.
8. Femme (Sam H. Freeman, Ng Choon Ping)
Jules é um performer drag queen em Londres que põe fim à sua carreira após um violento ataque homofóbico, mergulhando numa crise de isolamento. Meses depois, durante uma visita a uma sauna gay, ele reconhece o seu agressor e percebe que tem a oportunidade ideal para se vingar. O filme dos britânicos Freeman e Choon Ping é um inquietante jogo de gato e rato que explora os limites do desejo, num filme que está muito mais próximo da ambiguidade de “Elle” de Paul Verhoeven do que do convencional conto de vingança. Um filme que apesar de um desfecho um tanto insatisfatório, consegue elaborar uma interessante reflexão sobre homofobia internalizada e desejos proibidos, explorando as complexas relações de poder entre vítima e agressor.
7. Pedágio (Carolina Markowicz)
Após o tenso “Carvão”, que projetou a realizadora brasileira internacionalmente, chega o seu novo filme, estreado mundialmente nos festivais de Toronto e San Sebastian. A história acompanha uma mãe homofóbica, interpretada pela “indie hero” Maeve Jinkings, que se envolve com uma quadrilha de criminosos a fim de financiar a terapia de conversão gay para o seu filho adolescente. Este, por sua vez, passa os dias criando vídeos para as redes sociais, enquanto usa as roupas e maquiagem da mãe. Um filme discreto, de rara beleza, sempre caminhando numa linha entre o melancólico e o humor, (aliás, as cenas com o pastor charlatão português são hilárias) e que explora as relações entre mãe e filho de maneira sensível e muito comovente.
6. Rotting in The Sun (Sebastián Silva)
Sebastián Silva assume aqui uma versão de si mesmo, como um realizador enfrentando bloqueio criativo enquanto tenta controlar uma depressão e dependência das drogas. Durante uma visita a uma praia no México, ele cruza o caminho do influenciador Jordan Firstman (também a interpretar a si mesmo) e ambos embarcam na caótica missão de criar uma série colaborativa para a HBO. Contudo, as coisas obviamente saem fora do controle e um negrume se instala. Uma sátira inteligente sobre millennial angst que começa por ser uma comédia de verão, gay e descompromissada mas que de repente, num piscar de olhos, se transforma num pesadelo Hitchcockiano. Uma das surpresas do ano passado e que por acaso acaba de chegar à Mubi.
5. Saltburn (Emerald Fennell)
Depois do esquemático e oportunista “Uma Miúda com Potencial”, foi com certa surpresa que testemunhamos o divertidíssimo segundo filme da realizadora britânica Emerald Fennell. Barry Keoghan interpreta aqui um anti-herói pobre e tímido que, quase por acaso, passa a frequentar o grupo de jovens ricos e populares na Universidade de Oxford, mas que é rapidamente seduzido pelo lado vampirístico do high society. O que resulta disso é um filme feroz e de excessos e que não quer ser nada mais do que uma sátira desavergonhada sobre o mundo dissimulado dos super ricos. Um filme que já nasce como um dos objetos mais selvagens e controversos a dar a cara nos últimos meses, onde cada choque é devidamente calculado e, assim, ocupando o posto como mais saboroso dos “guilty pleasures” do ano.
4. Between Revolutions (Vlad Petri)
Em 1978, milhões de pessoas saíram às ruas de Teerão, expressando veemente oposição ao regime do Shah, um momento histórico que ficou conhecido como “a Revolução Iraniana” pelos persas. O realizador romeno Vlad Petri, inspirado por esses eventos, teceu uma narrativa semi-fictícia que entrelaça esse contexto com os anos de ditadura comunista na Roménia.
No final da década de 1970, Maria, uma estudante romena, cruzou o caminho da iraniana Zahra, enquanto ambas frequentavam a Universidade de Medicina de Bucareste. Mais tarde, em 1978, Zahra decide regressar ao seu país, pressentindo que grandes mudanças estavam à espreita. Apesar da distância, as duas continuam em contato ao longo dos anos por meio de cartas e, através delas, vão se revelando gradualmente a verdadeira natureza da relação que mantinham sob segredo. Como num romance histórico epistolar, as realidades dos dois países entrelaçam-se com a história de Zahra e Maria, e nos proporciona um belo falso documentário, que se utiliza de uma licença poética para nos mostrar que a história não só é implacável como tende sempre a repetir-se.
3. Orlando, Minha Biografia Política (Paul B. Preciado)
O impacto catártico provocado pelo filme de Preciado nas suas primeiras projeções na Berlinale do ano passado foi algo verdadeiramente impressionante. Em meio a um ambiente festivo, as pessoas aplaudiam em determinadas cenas e teciam comentários num tom de voz quase como se estivessem entre amigos nas suas próprias casas. Por um momento, esquecíamo-nos de que estávamos perante um documentário inspirado por um livro filosófico e complexo publicado em 1928. O feito de Preciado, um respeitado académico e filósofo francês, que aqui se aventura pela primeira vez no cinema, foi a sua notável capacidade de apropriar-se da obra clássica de Virginia Woolf e, assim, elaborar uma análise contemporânea e provocativa das complexidades da identidade de género e das políticas do sexo. E se utilizando de uma sagacidade intelectual e ousada conseguiu dar vida a um dos filmes mais divertidos, originais e inteligentes do ano.
2. Passages (Ira Sachs)
Num dilema emocional, um casal gay (interpretado por Franz Rogowski e Ben Whishaw), que partilha 15 anos de relacionamento, vê a sua trajetória amorosa complicar-se quando um deles se apaixona por uma mulher, interpretada por Adèle Exarchopoulos. Rogowski assume aqui o papel de um realizador egocêntrico que se envolve com a personagem de Exarchopoulos, e assim desencadeando um impacto profundo na vida de todos à sua volta. Em território parisiense, o americano Sachs fez o mais francês dos seus filmes e que, em última análise, parece querer desafiar a atual conduta do “filme de representatividade”. Ao forjar um protagonista gay e errático, que afeta a vida de todos à sua volta, Sachs está a nos dizer que tais retratos também podem fornecer oportunidades para explorar temas complexos às questões da experiência gay. Para além disso, ele se utiliza da explosiva sensualidade dos seus três protagonistas e expõe a toxicidade de uma impossível relação a três; ao mesmo tempo que elabora um antídoto anti-wokeness com um protagonista gay e narcisista com o qual até conseguimos nos relacionar. “Passages” é o melhor filme do realizador, que mesmo caminhando sobre terrenos arenosos, soube captar como poucos o aspecto mundano, e as contradições, de uma intimidade partilhada.
1. All of Us Strangers (Andrew Haigh)
O mais recente filme do realizador britânico Andrew Haigh possui um impacto emocional tão devastador que é quase impossível sair dele da mesma forma que se entrou. Lá em 2011, no seu primeiro filme de ficção “Weekend”, o britânico já demonstrava a sua habilidade minuciosa em relatar experiências queer, pegando numa premissa simples de dois estranhos que se encontram por acaso, e a partir daí desenvolvendo uma narrativa complexa e profunda de uma relação entre dois homens. No entanto, só agora, três filmes mais tarde, o realizador parece ter atingido uma tal maturidade e sensibilidade artística que não só impressiona como naturalmente o faz saltar para o time dos grandes autores.
Quase como uma continuação espiritual de “Weekend”, e fazendo uso de uma premissa muito semelhante, Haigh nos introduz calmamente à vida solitária do argumentista Adam (Andrew Scott) que vive em Londres num prédio onde os únicos dois apartamentos ocupados é o dele e do seu misterioso vizinho Harry (Paul Mescal). Então numa noite de sexta-feira, um falso alarme de incêndio desencadeia um encontro entre os dois e esse encontro sacode a monotonia da existência de Adam. À medida que a relação entre os dois se aprofunda, Adam começa a reviver algumas memórias da sua infância, e lá ele descobre que as muitas cicatrizes que ainda estão abertas insistem em querer sabotar a sua zona de conforto aqui no presente.
“All of Us Strangers” propõe construir uma ponte entre o passado e o presente para abordar o trauma como uma parte intrínseca de nós, algo que não pode ser simplesmente apagado ou superado, mas sim uma parte vital da nossa identidade, e que define quem realmente somos.
Um dos filmes mais memoráveis e devastadores dos últimos tempos, para ver com um lenço numa mão e o coração agarrado com a outra.