«Os Despojos do Dia» – Da moral escravizante que precede toda a escravatura

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A recente atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao escritor nipónico, que vive em Inglaterra desde de tenra idade, Kazuo Ishiguro, despertou-me a curiosidade por saber mais um pouco sobre a sua forma de ver o mundo. Ainda não tive o tempo necessário para me dedicar à leitura das suas obras, mas em alguns textos e entrevistas com o autor, apercebi-me que “Os Despojos do Dia” foi a sua obra com mais repercussão a nível mundial, e não resisti em ver o filme, inspirado na obra, cuja adaptação esteve a cargo da argumentista Ruth Prawer Jhabvala.

Stevens (Anthony Hopkins) é um mordomo extremamente dedicado à sua função. Sempre viveu e trabalhou na mansão de Darlington Hall, primeiro ao serviço de Lord Darlington (James Fox) e actualmente de Sr. Lewis (Christopher Reeve). Durante o tempo em que servia Lord Darlington, Stevens era apenas um espectador obediente nas conferências internacionais que tinham lugar na mansão, onde Lord Darlington era anfitrião e abria as suas portas – apoiando – a várias personalidades ligadas ao partido nazi. Durante este tempo, Stevens tinha a trabalhar consigo uma empregada com um charme encantador, Miss Kenton (Emma Thompson), que apesar dos seus esforços para se aproximar de Stevens e fazer com que o amor entre eles acontecesse, o mordomo manteve-se plenamente fiel à sua personagem social. Agora, Stevens parte em busca do tempo perdido, na tentativa de o recuperar.

O autor da história, afirma em várias entrevistas, que esta é uma história sobre o medo que temos de viver as emoções. Esse medo está perfeitamente protegido por uma armadura à prova de emoções que é a vida servil, a subserviência que nasce da fidelidade cega a algo ou alguém que determinamos como superior e que, por isso, merece a nossa veneração – Deus, o burguês de sucesso, o líder político…  Posso dizer que a personagem de Stevens foi uma das que mais me fascinou até hoje, pela forma como o artista que o pensou conseguiu inserir dentro dele algo tão vasto, tão nosso, tão humano (excessivamente humano?). Stevens representa aquilo que todos somos um pouco, a nossa (estranha) capacidade de priorizarmos o abstracto na vez do concreto, o desamor na vez do afecto, o sacrifício na vez da vida.  Estamos perante uma intrigante tragédia humana, uma alienação crónica, mais ou menos voluntária; e um pensamento de Baruch Espinosa pode resumir bem esta trágica forma de viver: o desconhecimento da causa das nossas acções faz com que a grande parte dos homens lutem pela sua servidão como se fosse pela sua liberdade.

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O rosto de Stevens quando confrontado com a notícia da morte do pai, em pleno trabalho, transparece algo de indizível, como se uma força moral, intensamente abstracta, o aprisionasse dentro dele, sem o deixar viver a emoção que quebraria a sua lógica servil e o deixasse sentir alguma vida pulsar dentro de si. Sentimos essa mesma presença quando Miss Kenton o confronta com a saída da mansão, por ter decidido casar com um amigo. Stevens reage com uma máscara de cordialidade, esboçando um sorriso onde se dá a ver um mau estar que vem do mais profundo de si.

O filme, na sua dimensão imagética, é bastante simples – embora não o seja na narrativa -, pois a forma está, claramente, ao serviço da história e da vida das personagens. São as emoções que ganham um relevo especial a partir das excelentes interpretações dos actores, principalmente de Anthony Hopkins. O ator oferece o seu corpo, fazendo dele uma prisão dos afetos, que se tornam visíveis quando transbordam pelas expressões do seu rosto domesticado, que acaba por ser o cárcere onde eles se transformam em outra coisa menos viva.  Existe um contraste interessante entre o corpo de Stevens e o corpo de Brandon (Michael Fassbender), no filme “Shame”, de Steve McQueen. Enquanto o primeiro é um corpo individuado, que retém dentro de si mesmo todos os afectos, expressando-se sempre dentro de um código deontológico cerrado; o segundo, é um corpo dionisíaco, que luta contra si mesmo, contra uma excessividade impulsiva que vem dilacerar a consciência. Isto faz-nos pensar que uma das coisas mais belas que o cinema tem é conseguir captar os afetos e, através dos corpos, espelhar as nossas distintas formas de pensar, sentir e agir.

“Os Despojos do Dia” é um filme que merece um olhar muito atento de todos nós, pois é sobre todos nós que ele fala. A ideia geral que preside à história é algo que saiu de um espírito capaz de ver a natureza humana com uma grande amplitude, apontando directamente para a nossa vivência do tempo e do amor. Talvez haja um pequeno fascista em todos nós, que se aproveita friamente da nossa amorfa tendência para a obediência a uma série de regras, como se a ordem fosse uma coisa estanque, que apenas temos de seguir. A nossa grande luta na vida é combater esse automatismo abstracto, mortificante, que contamina de tristeza tudo aquilo que nasceu para a alegria. James Ivory conseguiu um belo filme; e esta forma tão penetrante que o escritor Kazuo Ishiguro tem de ver o mundo merece toda a nossa atenção.

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Argumento: Kazuo Ishiguro (romance), Ruth Prawer Jhabvala (argumento)
Elenco: Anthony Hopkins, Emma Thompson, John Haycraft, Christopher Reeve, James Fox
USA/Reino Unido/1993 – Drama, Romance
Sinopse
: Stevens (Anthony Hopkins) é o mordomo inglês perfeito. Agora ao serviço do Sr. Lewis (Christopher Reeve), o novo dono americano de Darlington Hall, Stevens passou a maior parte da sua vida profissional ao serviço de Lord Darlington (James Fox), o anfitrião de muitas e prestigiadas conferências internacionais nos anos 30. Só quando a guerra começou, em 1939, é que o envolvimento de Lord Darlington com o partido Nazi foi descoberto. Agora, vinte anos depois, Stevens apercebe-se que a sua inquestionável fé e dedicação ao seu trabalho, foram mal aplicadas e tiveram um forte impacto na sua vida pessoal. Ao longo de vários anos, ele manteve um relacionamento intenso com uma jovem e atraente empregada da Propriedade, a Miss Kenton (Emma Thompson). Mas o seu implacável sentido de responsabilidade levou Stevens a rejeitar as suas próprias emoções – e consequentemente, afastaram a mulher que ele amava. Agora ele quer recuperar o tempo perdido…

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