Na primeira cena do filme “Os Fabelmans”, dei comigo a lembrar-me do primeiro filme que vi numa sala de cinema. Teria sensivelmente a idade de Sam Fabelman (Gabriel LaBelle), e outra curiosa coincidência: o filme era “Parque Jurássico”, de Steven Spielberg. Entrei nessa sala acompanhado pelos meus pais, uma vez que o filme foi classificado para idades superiores a doze anos, e eu ainda tinha dez. Se me perguntarem o que ficou em mim dessa experiência, diria que fiquei convencido de que os dinossauros ainda não estavam extintos; que os vi e senti, através daquela janela mágica que se abriu diante do meu olhar inocente. Estava plenamente exposto; tão exposto aos dinossauros quanto aquelas duas crianças que viajavam dentro do jipe. O meu olhar ainda não possuía distância suficiente para interpretar que aquilo que via eram apenas representações e não as coisas vivas; sentia tudo demasiado perto. Com um misto de fascínio e de terror, via as mandíbulas gigantes, pressentindo que aqueles caninos, longos e afiados, prontos a sair do ecrã, balizavam um espaço onde cabia toda a plateia. Alguns anos mais tarde, percebi que experienciei aquele momento, na idade certa e com o filme certo. Das questões de conteúdo fiquei com muito pouco, mas vivi plenamente o sentimento preciso que o realizador quis passar. Talvez se ele tivesse visto as minhas reacções – como tapava os olhos e escondia o meu rosto aterrorizado no regaço dos meus pais, – talvez se alegrasse ao descobrir nelas a melhor justificação da sua obra: “as reacções daquela criança acabaram de provar que o projecto amoral de entretenimento, de um capitalista excêntrico e caprichoso, deu origem à morte e ao terror”. Não a um terror abstracto, mas a um terror real.
Em “Fabelmans”, Spielberg mostra precisamente que o poder do cinema reside, tanto nas suas imagens como nas diferentes reacções que estas conseguem provocar. Ao ver a cena da colisão do comboio, em “The Greatest Show on Earth”, Sam tem o seu choque frontal com o poder do cinema. Ao sair da sala, leva o filme ainda vivo dentro de si; no seu interior, aquela colisão repete-se até ao infinito. O silêncio, durante a sua viagem de volta para casa, é a presença de um segredo íntimo que o filme deixou dentro de si: os filmes não acabam assim que a película se desprende da bobine; o nosso interior é idêntico a essa bobine, que continua a rolar depois de o filme terminar. Nesse momento, dá-se a metamorfose mais importante em Sam. Na criança nasce o “amador” do cinema: um termo criado por Jean Douchet, e que consegue captar tão bem a singularidade e a pureza dessa “arte de amar”: força motriz, tanto dos que fazem os filmes como dos que os vivem e escrevem sobre eles.
“Fabelmans” mostra-nos o processo de aprendizagem desse amador do cinema, que progressivamente vai fazendo o seu percurso de vida, tendo pela frente essa árdua tarefa que é do seu amor conseguir ver nascer a sua profissão. E essa aprendizagem acontece numa dialéctica íntima entre o cinema e a vida: a vida deu-lhe o cinema e ele devolve-o à vida. Sam, a partir do momento que pressente os superpoderes de uma câmara de filmar, dedica a sua vida a tentar desvendar essa poderosa e fascinante máquina, que consegue ver mais e melhor do que ele.
Nos seus primeiros exercícios cinematográficos, a câmara é ainda um laboratório de experimentação; é a fase mimética, onde explora e imita as cenas que mais o entusiasmam. Para si, o cinema ainda existe apenas na sua forma de entretenimento e leveza; no fundo, a única forma que lhe preserva a inocência da infância e o vai protegendo do excesso de realismo a que o mundo o vai obrigando. Se o cinema de ficção lhe deu sempre as maiores alegrias; a descoberta do documentário irá devolver-lhe uma nova realidade, difícil de suportar. Para além dos poderes de manipulação e controlo das imagens, ele descobre fatalmente o extremo poder de vidência da câmara, e a obsessão paranoica que as imagens podem suscitar.
As primeiras brincadeiras exploratórias da ficção dão lugar ao realizador que explora o real com a câmara. Se na sala de cinema, Sam teve o primeiro choque com o poder de encantamento do cinema, nesta nova fase, terá o seu primeiro choque com o cinema-verdade – isto é, com a quantidade de verdade que o cinema consegue conter dentro de si. Para aliviar um pouco o sofrimento do luto da mãe (Michelle Williams), o pai (Paul Dano) oferece-lhe uma nova máquina de montagem, pedindo em troca um documentário do acampamento que irão fazer em família. Sam torna-se “a mosca na parede”. Pela primeira vez, a criança com o prazer de controlo sobre a câmara, deixa-a à solta, permitindo que ela vá absorvendo a realidade. Durante a montagem, descobre que a câmara afinal absorveu mais realidade do que aquela que ele esperava, descobrindo que existem dois filmes naquelas imagens. O primeiro mostra as dinâmicas familiares naturais, que as limitações do seu olho humano sempre viram; já o segundo filme, vai nascendo de um “inconsciente óptico”, onde Sam vai entrando, lenta e obsessivamente. Ele vai descobrindo uma dimensão misteriosa e tenebrosa, dando por si numa floresta obscura, rodeado por gestos e olhares não conscientes, onde só o olhar maquinal da câmara poderia penetrar. É nesses signos involuntários, que vão emanando das imagens do acampamento, que ele vai descobrindo os signos de amor entre a mãe e o amigo da família, Bennie (Seth Rogen). Sam não pode sair ileso desse mundo que até então desconhecia, já que aquelas imagens lhe abriram violentamente uma janela que ele já não tem o poder de fechar. Resta-lhe projectar para a família o filme conhecido; guardar na gaveta essa bomba-relógio e sofrer em silêncio.
Sam não volta o mesmo depois deste choque com a realidade. As suas reacções para com a mãe e Bennie tornam-se demasiado duras e incompreensíveis para os dois, até Sam decidir mostrar à mãe as imagens que mantinha guardadas. No final da projecção, a reacção de Mitzi é tão intensa que Sam deixa o seu ressentimento para trás, sente piedade da mãe e abraça-a. Ele descobre novamente a violência com que podem embater os signos do cinema numa sensibilidade. Sam perdoa naquele momento a mãe, ficando consciente da sua ignorância em relação aos seus próprios afectos, denegados e latentes. É novamente o cinema a trazer as verdades à superfície: ora das próprias imagens, ora dos corpos que reagem emocionalmente a elas; e é novamente o poder de vidência da câmara, que consegue tornar presente o passado e o futuro; e tornar visível o que até então permanecia invisível.
Quando transita para a nova escola, Sam vai sofrendo bullying pelas mãos de um grupo de colegas. Porém, não reage, não se vinga naquele momento, mas a criança que cedo aprendeu os poderes de manipulação do cinema, surgirá em toda a sua maturidade ética, política e criativa. Se num registo observacional, de câmara à solta, ele ficou ferido por uma realidade em bruto, para a qual olhou demasiado de frente, neste novo documentário, adopta uma postura formalista capaz de mostrar como o poder do cinema pode facilmente sair da sua esfera de entretenimento, livre e descomprometido, para apropriações políticas que instrumentalizam e manipulam. Se, no registo observacional, o cinema se mostra na sua capacidade de verdade; neste novo registo formal, ele mostra-se na sua, subtil e insidiosa, capacidade de falsificação da realidade. No seu documentário, Sam, qual Leni Riefenstahl, consegue mostrar como aquilo que aparece nas imagens cinematográficas tem um peso ético: como o cineasta decide que realidade pretende captar, como a pretende captar, e que quantidade pretende captar. Por isso, consegue passar a imagem de Logan (Sam Rechner) como símbolo de poder, através do realce dos seus músculos, dos grandes planos de rosto e do uso de planos contra picados; já com Chad (Oakes Fegley), Sam escolhe trazer para o seu filme apenas os pedaços de realidade onde Chad falha ou é gozado.
Ele manipula o real para nos dar a ver que, para o olhar comum, o cinema nem sequer existe; que é uma experiência abstracta, que se esgota no final da projecção. Logan diz-lhe que “a vida não é como nos filmes”. Mas a verdade é que “no final”, é Logan “quem fica com a miúda”. Sam poderia pensar para si mesmo: “tal como o cinema moldou desde sempre toda a minha vida, como não percebes que ele, em poucos minutos, acabou de moldar a tua?”.
No final, fica a ideia de que o cinema vai mudando a vida dos seus fiéis “amadores” às claras, e o mundo às escondidas.