A equipa do Cinema Sétima Arte voltou a juntar-se para votar nos melhores filmes do ano. Os nossos membros (Cláudio Azevedo, Diogo Ferreira, Hugo Gomes, Inês Neves, Letícia Mendes, Luís Ferreira, Mariana Azevedo e Tiago Resende) elegeram “Retrato de Uma Rapariga em Chamas”, da cineasta francesa Céline Sciamma, como o melhor filme de 2020, uma comovente e sublime história de amor sobre mulheres e feito por mulheres, que venceu inúmeros prémios, como o de Melhor Argumento no Festival de Cannes e nos Prémios do Cinema Europeu, Grande Prémio no Festival de Chicago e no Festival de Denver.
A força do amor que persiste na memória, de amores separados, de paixões, retratos da nossa existência, o sonho de quem lutou por uma revolução e se desiludiu, a busca por uma libertação ou o perdão por quem pede um pouco de compreensão neste mundo socialmente desigual e injusto são os temas centrais destas obras que formam o que de melhor estreou nas salas de cinema portuguesas em 2020 e, pela primeira vez, que estrearam em plataformas de streaming.
“Da 5 Bloods”, “O Homem Invisível”, “Amor Fati”, “O Nosso Tempo”, “Mulherzinhas” e “Les Miserables” são alguns dos filmes que integraram as listas individuais dos membros do Cinema Sétima Arte, mas que acabaram por ficar de fora. Ao todo, foram selecionados cerca de 45 filmes, dos quais resultaram 10 finalistas.
Este ano não temos, infelizmente, nenhum filme português a entrar para a nossa lista dos melhores filmes do ano, mas nem por isso deixou de ser um ano rico para o cinema português. Ainda assim, é de destacar obras tão importantes como “Mosquito”, de João Nuno Pinto, “Ordem Moral”, de Mário Barroso, “Amor Fati”, de Cláudia Varejão, “Listen”, de Ana Rocha de Sousa, e “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de João Botelho.
2020 foi o ano da pandemia, do medo, da solidão, do distanciamento físico e o cinema foi uma das áreas da cultura mais afetadas pela pandemia da COVID-19. Nunca antes se viveu tal cenário e nunca antes se tinha visto um mundo sem salas de cinema. As portas dos cinemas reabriram aos poucos, mas nem todas vão conseguir manter-se abertas por muito mais tempo com as restrições de segurança e do número limite de entradas. É um duro golpe para o cinema, mas sobretudo para os exibidores. Uns souberam adaptar-se, mas outros não, e é curioso que têm sido os cinemas de bairro, as salas de cinema independentes e os cineclubes as que se têm mantido vivas. Já as salas de cinema comerciais não se adaptaram tão bem à crise e algumas podem vir a fechar portas. As salas de cinema portuguesas registaram o pior resultado dos últimos 9 anos, tendo sido vendidos menos de 4 milhões de bilhetes. Em 2019 tinham ido ao cinema 15,5 milhões de espectadores.
2020 fica também na memória como o ano da transição definitiva para o streaming. Se já há vários anos se avistava uma transição e mudança de comportamento do público das salas físicas para os serviços de streaming, em 2020 não restaram dúvidas de que essa transição ganhou uma nova força e vontade de ser o novo modelo de exibição. No final deste ano, assistimos a vários estúdios de Hollywood a estrearem os seus filmes diretamente em plataformas de streaming, como a Disney+ (que chegou este ano a Portugal), Apple TV+ e HBO Max.
Destacamos ainda neste balanço do ano algumas personalidades do universo cinematográfico que morreram em 2020: o ator escocês Sean Connery, o compositor e maestro italiano Ennio Morricone, o cineasta sul-coreano Kim Ki-duk, o ator e realizador francês François Leterrier, o ator francês Michael Lonsdale, o ator Chadwick Boseman, a atriz Olivia de Havilland, o ator inglês Ian Holm, o autor, dramaturgo, argumentista e ativista Larry Kramer, o ator francês Michel Piccoli, o ator português Filipe Duarte, o realizador japonês Nobuhiko Obayashi, o ator sueco Max von Sydow, o ator Kirk Douglas, o ator e realizador Terry Jones, e o produtor Henrique Espírito Santo.
Num ano tão atípico como este restam-nos estes filmes, e tantos outros que ficaram de fora desta lista, para nos dar alguma esperança, força e vontade de continuar a lutar por um mundo melhor, de amar e de nos respeitarmos, por uma sociedade mais igual.
Estes são os dez melhores filmes do ano, os mais votados pelos colaboradores do Cinema Sétima Arte:
1.º Retrato de Uma Rapariga em Chamas (2019), de Céline Sciamma
O filme de Céline Sciamma mostra-nos como o amor é uma centelha imortal, apesar das cavernas que o conservadorismo sempre criou para esconder os que a guardam dentro de si. E, só quando essa centelha flameja é que percebemos qual a verdadeira fonte de pujança criativa e força movente do mundo. Dentro dessa escuridão, numa altura em que, ironicamente, se almejava a emancipação pelas veredas abstractas do conhecimento, Marianne e Héloïse, dão-se a liberdade de se incendiarem na pele uma da outra. É essa chama, tão invisível quanto intensa, que os gestos de Marianne, transfigurando esse fogo em formas e cores, vão colocando dentro da sua tela.Apesar da força moral que abafa as suas individualidades e liberdades, ao terem de se entregar aos amores encomendados da sua época, o amor entre estas duas mulheres, e a arte que nelas tem origem, aparece como a mais bela forma de resistência.
E se temos na questão da representação o problema crónico das nossas formas de pensar, uma vez que tomamos facilmente uma parte da realidade como a única legítima a ter um verdadeiro lugar social, então, este filme ganha um valor acrescido. A forma inteligente e criativa como Sciamma coloca, através da pintura, duas mulheres a mostrarem ao mundo o seu poder de (auto)representatividade, tão pleno de vida, é, sem dúvida, o gesto político, por excelência, da realizadora. E fá-lo, sem, em nenhum momento, precisar de sobrevoar a obra com abstracções. Se na vida social somos obrigados a percorrer infindáveis e soturnas cavernas, Sciamma diz-nos: “no meu filme, só aponto a câmara para aquilo que arde”.
2.º Martin Eden (2019), de Pietro Marcello
“Martin Eden” é (re)criação, uma obra de um documentarista em cadente emancipação da sua génese [documentário] que reinventa o homónimo clássico literário de Jack London – a história de um marinheiro pouco habilitado que decide ser escritor a todo o custo – e que através disso re-imagina uma “outra” Itália e consequentemente um alternativo século XX. É um filme de sentimentos, paixões avulsas e fervores corridos nas veias do protagonista (um versátil Luca Marinelli) e do espectador. De Pietro Marcello, as vozes mais discretas e atentas o apontavam como um nome a reter na órfã cinematografia italiana, se distingue por um malabarismo lírico e politizado e umas quantas, e merecidas, vénias ao legado deixado por uma Itália iluminada por maestros e pelo prazer da grande tela. Será o regresso dos pomposos autores italianos? Só o tempo dirá.
3.º Diamante Bruto (2019), de Benny Safdie e Josh Safdie
Uma autêntica corrida em que o fôlego é engolido num exaspero e sem tempo para tonturas. Tudo emerge, tudo é grandioso, tudo é barulho tumultuoso até nos maios maiores silêncios que o filme tem preenchidos por uma trilha sonora que nos faz lembrar os filmes dos anos 80.
Somos suspeitos, mas das melhores coisas que o cinema viu em 2020 foi um regresso em grande de Adam Sandler. Uma pena que mais uma vez o barómetro dos Óscares não passe apenas disso, pois este seria certamente o diamante em bruto mais justo, mas…todos sabemos que 2020 foi um tremendo descalabro. Um argumento onde um joalheiro é um autêntico viciado em jogo, um eterno apaixonado, um mentiroso nato e com esperança que tudo vai ficar bem? Só os irmãos Safdie para nos manterem debaixo deste feitiço. Mas são os espectadores que ficam a ganhar com uma história que nos pede para controlar a ansiedade com doses capazes de nos provocar uma overdose.
4.º Da Eternidade (2019), de Roy Andersson
Na lente do sueco Roy Andersson, os jovens vibram com a sua, ainda, fresca-vida e farejo pelas emoções, já os adultos, são caras-pálidas, solipsistas, e na sua interminável agonia procuram uma razão para as suas miseras existências. Poderíamos despachar “Da Eternidade” como um ensaio episódico de humor nórdico, porém, a morbidez aqui implantada possui muito de trágico, cruel e, porque não, reflexivo com o nosso próprio existencialismo. Há uma veia autoral que tem acompanhado o autor de filme para filme, encontrando neste novo punhado de relatos sortidos as várias peripécias que classificam os humanos como os martirológicos e insatisfeitos mortais. Tudo reduzido a um niilismo provocatório que nos faz procurar poesia nas suas imagens despidas de apelos teológicos e espirituais.
5.º A Vida Invisível (2019), de Karim Aïnouz
Baseado no romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, e vencedor do Prémio do Júri no Festival de Cannes 2019, é um filme comovente sobre duas irmãs, filhas de imigrantes portugueses, que são separadas e vítimas de um sistema patriarcal e conservador. As duas mulheres são forçadas a viverem as suas vidas separadas, sempre na esperança de um dia se reencontrarem. Apesar de viverem na mesma cidade, Rio de Janeiro, as duas irmãs vivem uma vida duplamente invisível, por não se conseguirem reencontrar e por serem mulheres. Ambas vivem uma vida de insegurança, de violência sexual e psicológica, numa busca constante pela independência do homem, que as oprime. Karim Aïnouz faz um drama de época sobre a importância de pensarmos o nosso presente e da luta feminista pelo alcance na plena igualdade de direitos entre homens e mulheres. Com interpretações soberbas, este é um dos mais belos filmes de 2020 que retrata o sistema patriarcal e machista da época, e que ainda hoje se mantém.
6.º Roubaix, Misericórdia (2019), de Arnaud Desplechin
Este filme baseado em factos reais, passa se numa das cidades mais problemáticas de França, em Roubaix de onde o realizador é natural. Um policial cinzento em que duas mulheres são acusadas da morte de uma idosa. Duas amantes, numa cidade a ruir, numa família repartida por instituições e numa localidade em chamas. Os problemas sociais são entregues ao espectador logo nas primeiras cenas e remontam-nos para a realidade que não nos consegue cegar. Não é fácil ignorar a decadência da condição humana quando já não há esperança para dias melhores. O alcoolismo patente nas personagens embriagado no amor que sentem uma pela outra e até onde a culpa pode ser assumida, faz nos ficar agarrados à história. Não é só um retrato da sociedade francesa, é um filme que nos engole o último suspiro e como já não há muitos. Hitchcock gostaria de o ter visto e ainda tiraria apontamentos.
7.º O Paraíso, Provavelmente (2019), de Elia Suleiman
A quarta longa-metragem do cineasta palestiniano Elia Suleiman acompanha a sua jornada pela preservação de uma identidade cada vez mais caducada. O conflito israelita-palestiniano continua como embarque burlesco e satírico do realizador, que se assume mais uma vez como uma variação de “clown” na tradição de um Jacques Tati ou Chaplin, para evadir da guerra que integra a sua natureza e legado. Percorrendo o Globo, ele acaba por deparar com um mundo entretido com os seus próprios jogos bélicos e rebeliões. Um conto amargurado onde Suleiman, descrente de qualquer epifania esperançosa, suplica pela compreensão e reação. É o seu melhor filme desde “Intervenção Divina”, e até à data, o seu mais revoltoso. Contudo, subtilmente revoltoso.
8.º O Caso de Richard Jewell (2019), de Clint Eastwood
Clint Eastwood é um realizador, que nos tem vindo a mostrar como o passar da idade, pode ser uma intensificação dos saberes e do domínio de um medium que já faz parte do núcleo mais profundo da sua identidade. Talvez essa sabedoria esteja na descoberta de algo que sempre esteve tão perto, mas que a força mais juvenil rejeita para dar lugar a ambições longínquas. Eastwood nos dois últimos filmes tem usado casos reais, onde Eastwood descobre algum tesouro escondido dentro destes heróis anónimos e comuns. Acredito profundamente que a grande descoberta e maturidade do cinema está no pensamento bressoniano de que o cinema surge quanto mais anularmos tudo o que é cortina de fumo e aparato exterior, e quanto mais buscarmos a natureza, sempre misteriosa, do nosso mundo interior. É isto que Eastwood tem conseguido nos últimos filmes, e em “O Caso de Richard Jewell”, essa economia de aparatos e grandes feitos está perfeitamente equilibrada para conseguir fazer aparecer essa outra natureza que parece dar um privilégio especial ao medium cinematográfico, o que Bresson chamaria vida interior; Deleuze, pensamento ou imagem directa e cristalina do tempo. Qualquer gramática conceptual serve para tentar dizer essa presença misteriosa, esse brilho que passa a cintilar diante do nosso olhar, que passa também ele a cintilar por simpatia da ressonância dessa luz. Richard é esse herói, que a sua forma retraída, tímida e contida, faz com que preserve a sua interioridade até ao momento-chave em que a sua exteriorização emocional se revela, ainda contida, sem escoar a sua interioridade, ou seja, a si mesmo. Podemos dizer que Eastwood começa a hibridizar o seu cinema-acção com um estilo transcendental, cuja adopção da banalidade e dos ritmos mais estáticos, começam a revelar e a entrar num mundo cinematográfico, sempre tão desconhecido e misterioso, como o da vida humana.
9.º O Lago dos Gansos Selvagens (2019), de Yi’nan Diao
Suprema ironia: um dos grandes filmes deste ano tem lugar na malfadada província chinesa de Wuhan. Ou talvez, nenhuma ironia: quem tem prestado atenção ao cinema que se faz por esses lados do globo – onde incluímos filmes de autores tão heterogéneos quanto Jia Zhangke ou Bi Gan –, sabe que a China contemporânea se define por uma hipersensibilidade política, social e económica, que faz dela o palco das mais imprevisíveis mutações do nosso tempo. Diao Yi’nan, com o seu “Lago dos Gansos Selvagens”, serve-se do mais transparente dos géneros, o noir, para filmar um país intoleravelmente próximo do futuro. Em pouco menos de duas horas, estilhaçam-se todas as ocidentalíssimas esperanças que nos pudessem restar: o capital perde de vez qualquer rosto humano; as próprias “personagens” deixam de o ser, reconvertendo-se em puros vectores de acção; e as imagens, hiper-estilizadas, adquirem um rigor que as torna implacáveis.
10.º Corpus Christi – A Redenção (2019), de Jan Komasa
Pegando na velha história do “lobo sob vestes de cordeiro” deparamos com um conto violentíssimo sobre a redenção, a iluminação espiritual e o conforto de demónios interiores, mas acima disso tudo, é um ensaio sobre a identidade e a sua imposição através de fabricados “estatutos sociais”. Para Daniel (Bartosz Bielenia), um delinquente oriundo de um austero reformatório, a solução para o seu inadiável destino é encontrada numa batina de padre. Graças a ela, acidentalmente, é “promovido” a pároco de uma cidade provinciana atormentada por uma tragédia passada. O realizador Jan Komasa consegue aqui o seu Evangelho, uma história de luz em oposição à escuridão próspera numa metaforizada Polónia. Uma grande descoberta.