A equipa do Cinema Sétima Arte voltou a juntar-se para votar nos melhores filmes do ano. Os nossos membros (Cátia Santos, Cláudio Azevedo, Letícia Mendes, Maria Inês Gomes, Mariana Azevedo, Tiago Resende, Vanderlei Tenório, Wellington Almeida e Yara Medeiros) elegeram “First Cow”, da cineasta norte-americana Kelly Reichardt, como o melhor filme de 2021.
Estreado originalmente em 2019, no Telluride Film Festival, a produção independente “First Cow” só estreou comercialmente em Portugal e no resto da Europa este ano. Desde a sua estreia que este western da realizadora indie Kelly Reichardt tem vindo a integrar inúmeras listas de melhores filmes do ano, tendo também conquistado vários prémios. Este sublime e delicado western, raro dentro do género, conta a história de um cozinheiro habilidoso e um fugitivo chinês que travam amizade nos tempos do Velho Oeste, enquanto criam um negócio que envolve roubar o leite da única vaca que ali havia, a primeira naquele país.
Retratos de uma América imaginada, feridas de uma Espanha que tenta ignorar um passado sombrio, o medo de viver em pecado, memórias de uma família, a evocação da memória de um massacre na Europa ou o brinde à vida, celebrando-a com um shot de whiskey, são alguns dos temas centrais destas obras que formam o que de melhor estreou nas salas de cinema portuguesas em 2021.
Os critérios de selecção para a Lista de Melhores Filmes consideram filmes estreados em Portugal no ano de 2021, quer em salas de cinema, quer em plataformas streaming disponíveis nacionalmente, até ao dia 28 de dezembro, motivo pelo qual o tão antecipado “Licorice Pizza” de Paul Thomas Anderson fica de fora (o filme estreia nos cinemas nacionais a 30 de dezembro).
A lista deste ano inclui dois filmes que estrearam numa plataforma de streaming (a Netflix), o que demonstra como os ventos são de grande mudança, e a pandemia em 2020 veio dar o sopro que faltava para que essa mudança se concretizasse. A pandemia serviu de empurrão para mudar o paradigma. A lógica de distribuição e exibição dos filmes alterou-se, adaptou-se aos novos tempos que vivemos e cada vez mais o cinema vai chegar ao ecrã pequeno, deixando o ecrã grande para eventos pontuais e de curta duração.
Outra curiosidade da lista deste ano é que metade dos filmes são realizados por mulheres (Kelly Reichardt, Jane Campion, Catarina Vasconcelos, Jasmila Žbanić e Julia Ducournau) e a outra metade por homens.
“Dune”, “Três Andares”, “France”, “O Homem que Vendeu a Sua Pele”, “Spencer”, “Nova Ordem”, “Kajillionaire”, “Undine”, ou o poético e um dos acontecimentos cinematográficos do ano em Portugal, “O Movimento das Coisas”, são alguns dos filmes que integraram as listas individuais dos membros do Cinema Sétima Arte, mas que acabaram por ficar de fora. Ao todo foram selecionados cerca de 56 filmes, dos quais resultaram 10 finalistas.
Da cinematografia portuguesa ficaram de fora filmes como o já referido “O Movimento das Coisas”, mas também dois dos mais badalados do ano: “Prazer Camaradas!”, de José Filipe Costa, e “Diários de Otsoga”, de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes.
Se 2020 foi o ano de uma das maiores feridas alguma vez infligidas às salas de cinema, 2021 foi o primeiro ano de pôr um penso. Este ano foi o início da recuperação, tendo já mais de quatro milhões e meio de espectadores ido ao cinema, batendo assim os números de 2020 (menos de quatro milhões de espectadores). Em 2021 os números do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) demonstram uma recuperação considerável no número de bilhetes vendidos e nas receitas, em relação ao ano anterior. Certamente que serão precisos vários anos para as salas de cinema sararem esta grande ferida e podem até nunca recuperar totalmente.
O facto de este ano termos tido a vacina, uma das conquistas do ano, e o facto de muitas das estreias terem sido adiadas de 2020 para 2021, ajudam em parte a perceber este aumento de espectadores nas salas de cinema. O público que esteve confinado durante meses no ano passado quis regressar à sala escura e os blockbusters regressaram, levando milhões em todo o mundo para ver filmes como “Duna”, “007: Sem Tempo Para Morrer”, “Homem-Aranha: Sem Volta a Casa”, “O Esquadrão Suicida”, “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis”, “Velocidade Furiosa 9” ou o sucesso português do ano, “Bem Bom”.
Destacamos ainda neste balanço do ano algumas personalidades do universo cinematográfico que morreram em 2021: a lenda da Nouvelle Vague, o ator Jean-Paul Belmondo, a atriz Maria João Abreu e o ator Rogério Samora, o realizador francês Bertrand Tavernier, o ator Dean Stockwell, o lendário ator canadiano Christopher Plummer, o ator Ed Asner, o ator norte-americano Hal Holbrook, o ator e realizador Norman Lloyd, e mais recentemente, o realizador canadiano Jean-Marc Vallée.
Estes são os dez melhores filmes do ano, os mais votados pelos colaboradores do Cinema Sétima Arte:
1º First Cow – A Primeira Vaca da América (2019), de Kelly Reichardt
O filme é baseado na obra “The Half-Life”, de Jonathan Raymond (2004), a adaptação cinematográfica distancia-se da narrativa literária focada em paralelo em dois grupos de amigos separados por um século, ao invés disso, foca-se exclusivamente na amizade entre King-Lu (Orion Lee) e Cookie (John Magaro). O recorrente travelling da realizadora Kelly Reichardt em que surge o movimento de câmara que acompanha o fluir do rio da vila de Oregon, em 1820, conduz-nos à possibilidade de reconhecer o carácter transitório da passagem do tempo da vida.
Se, por um lado, o movimento de câmara que acompanha a fluidez e a passagem da natureza substancial adequa-se a traduzir a realidade da natureza, por outro lado, a serenidade e demora contemplativas que nele se inscreve dá-nos a sensação, a nós humanos, de estarmos perante um número considerável de hierofanias, isto é, de manifestações do sagrado que se mostram. Ao domínio do natural pertencem o rio, a terra, e a vaca, partes integrantes do nosso mundo «profano». Contudo, experienciá-los enquanto manifestações do sagrado irá torná-los numa outra coisa, que os distingue das demais, ainda que permaneçam os mesmos. Assim, quando Cookie e King-Lu se apercebem da existência de uma única vaca na vila, esta não será mais um qualquer objecto inserido na moldura da floresta, a primeira vaca que aparece na vila ser-lhes-á a possibilidade de comunhão com o sagrado.
2º O Poder do Cão (2021), de Jane Campion
Tão misterioso como as paisagens que o rodeiam, “O Poder do Cão” tece lenta e imprevisivelmente as linhas com que se cose. Cheio de silêncios e olhares, pequenos gestos, grandes frustrações e olhares furtivos, é a busca amargurada pelo amor perdido. Jane Campion perde tempo, com toda a certeza, durante duas longas horas, mas é um tempo perdido a construir as personalidades de todos os intervenientes e, no final, nada nem ninguém é o que parece, nada do que se construiu ficará de pé. Uma obra de mestre que enche a alma porque se inteira sem medos do que é composta a vida humana. No fundo, todos querem a felicidade do outro, mesmo que nessa intenção escondam o egoísta desejo de atingir o que acreditam ser a sua felicidade. “O Poder do Cão” é um dos melhores do ano, mas não só, veio para ficar, de cada vez que quem o viu o rememora, nem que seja em espírito. Fica debaixo da pele.
3º Mães Paralelas (2021), de Pedro Almodóvar
Não são somente as vidas de duas mães que se encontram em paralelo neste filme de Pedro Almodóvar, são também duas facetas da história que aqui é contada: por um lado, a dimensão pessoal das histórias de vida de Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), por outro lado, o sentido abstracto da História da Espanha que carece de enfrentar as suas feridas franquistas. Da mesma forma que as vidas paralelas das duas mães irão para sempre unir-se aquando do encontro na maternidade, também o modo pessoal de vivermos está profundamente intrincado nas raízes historicistas do nosso antepassado. Assim sendo, para que Almodóvar afirme a necessidade da possibilidade da maternidade e da sexualidade não mais serem fruto da normatividade heterossexual e de estruturas familiares hierarquizadas, ele desenterrará as feridas abertas num (auto)exame das raízes históricas que fizeram crescer as forças patriarcais, conservadoras e misóginas. Por conseguinte, “Madres Paralelas” constitui-se como um melodrama que nos prende do início ao fim, pois que o filme é um cativante contar de história acerca das vidas cruzadas de duas mulheres mães, ainda assim, a camada mais profunda é, porventura, a afirmação mais essencial e humanista que o cineasta nos deixa, a saber, a pertinência da preservação da memória.
4º The Card Counter – O Jogador (2021), de Paul Schrader
O teórico do cinema Paul Schrader é demasiadamente reflexivo na sua construção cinematográfica para se desembaraçar da dimensão ética dos seus filmes, e “The Card Counter” (2021) não é, portanto, excepção, antes confirmação, e o filme alterna, essencialmente, entre dois planos: o ambiente dos casinos, dos jogadores de póquer e dos torneios de jogos de cartas; e o plano das memórias de William Tell (Oscar Isaac) enquanto ex-militar que aplicava técnicas de interrogatório a prisioneiros de guerra. Schrader está ciente daquilo que divide actualmente a América, e de que os jogadores-trumpistas, que vestem as cores do país dos pés à cabeça, são os mesmos que defendem cegamente um sistema que desconhecem estar a tresandar mal por dentro. Resta-nos apostar numa nova criação do mundo, somente um acto de criação de adão é capaz de curar feridas e para isso, haja mercy of man (a banda sonora composta por Robert Levon Been para o filme).
5º A Metamorfose dos Pássaros (2020), de Catarina Vasconcelos
A singularidade de um desejo e de uma homenagem, de um recortar temporal e memorial que se partilha, ultrapassa, em muito, a lógica do mero fabular. Essa outra fabulação de que este filme fala é bem mais íntima, é bem mais centrada no plasmar e no registar imagético despojado. Se as memórias são as de Catarina Vasconcelos e se o filme que delas se faz é para ser dado ao seus avós e para os fazer falar de novo, então ele é o mais pessoal dos filmes. E é também um ato de coragem, o de deixar que todos os desconhecidos possam saber o que de uma só família foi e que agora se faz, como um filme, de muitos e tantos outros – o que quase parece uma invasão desse íntimo familiar – e que é dado como uma dádiva desprendida e generosa de uma cineasta que tanto dá a ver dessas suas memórias dos seus entes mais queridos. (Leia mais)
6º Mais Uma Rodada (2020), de Thomas Vinterberg
Em 2020, Thomas Vinterberg brindou-nos com o seu filme, vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, “Mais Uma Rodada“. O realizador dinamarquês erige o seu filme a partir de uma premissa inusitada: um experimento levado a cabo por um conjunto de professores que decidem testar quais os efeitos, ao nível social e profissional, de uma crescente intensificação da ingestão de álcool. A forma como Vinterberg escapa a qualquer posição pretensiosa e moralista é, sem dúvida, a grande qualidade do seu filme. A embriaguez é colocada, muito subtilmente, como reflexo de uma interioridade, que, aos poucos, vai-se revelando em toda a sua fragilidade. Esse doce veneno, que no início parece sintoma de maior libertação, transforma-se rapidamente num espelho onde se revelam, com assustadora transparência, todos os abismos que nos habitam.
7º Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun (2021), de Wes Anderson
O filme são apenas histórias inventadas num universo cénico com que Wes Anderson nos continua a enfeitiçar. Tem animação, tem banda desenhada, tem perseguições e mesmo assim pode ser o que qualquer adulto deseja sem disfarçar um sorriso. Chamem o que quiserem, mas é uma carta de amor ao jornalismo, ou pelo menos aos verdadeiros jornalistas que Wes Anderson admirou (e que ao dia de hoje não existem). Mas para ficção sobre reportagens teremos sempre Paris….e Wes Anderson.
8º Titane (2021), de Julia Ducournau
Desde o lançamento da sua primeira longa-metragem “Raw”, em 2016, a realizadora francesa Julia Ducournau, de 37 anos, ganhou um fã-clube. Ao ousadamente explorar no cinema o gênero body horror (ou horror corporal), Ducournau é uma das poucas mulheres que estão a destacar-se mundialmente na escrita e na direção desse tipo de história. Isto é, as expetativas para a sua 2ª longa sempre foram altas. Em “Raw”, ela abordou o canibalismo, ao retratar uma jovem vegetariana que de repente desenvolve um desejo insano por carne. Em “Titane”, que surpreendentemente venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano (tornando-se apenas na segunda mulher a ganhar o prémio), Ducournau aprimora sua abordagem do body horror num nível em que os espectadores não saberão se saem do cinema para vomitar ou se continuam na sala para descobrir o final. A maioria deverá continuar na sala.
9º Quo Vadis, Aida? (2020), de Jasmila Zbanic
Nada inocente, mas imensamente corajoso, “Quo Vadis, Aida?” surge com imenso poder curativo, ou pelo menos nessa tentativa. Mais do que delinear o que foi o passado, a sua realizadora, Jasmila Zbanic, interpela a memória para desenhar um futuro onde as feridas de Srebrenica não doam tanto. A partir da história realíssima do massacre dos bósnios pelos sérvios, o filme faz as perguntas necessárias para tirar do caminho a ilusão de que os acontecimentos não foram tão cruéis como o tempo tende a fazer crer. Passados quase trinta anos, para que não se esqueça, “Quo Vadis, Aida?” tudo faz e acredita que um mundo diferente ainda é possível. É essa crença que o torna tão poderoso, desarmante e profundamente emotivo. Num ano mais uma vez incomum, ver a força de Aida, ainda que ficcionada, na sua luta para que a família se mantenha unida, traz um olhar de verdade e coragem de que o mundo precisa cada vez mais. Só passaram trinta anos e nada garante que um massacre como aquele não volta a acontecer. Afinal, o que aprenderam os homens e e que caminho seguem?
10º A Mão de Deus (2021), de Paolo Sorrentino
Paolo Sorrentino traz sua biografia na deliciosa ficção “È stata la mano di Dio”. Conta um período trágico do final da sua adolescência de modo leve, sem mergulhar profundamente no drama ou em posicionamentos morais e intercala fatos da sua história com a expectativa dos napolitanos com a chegada de Maradona ao clube de futebol da cidade. O filme é repleto de nuances de beleza, horror, amor, afeto, loucura, morte e esperança com textos que, às vezes, confundem-se com lições de vida que, não sabemos ao certo se é o realizar quem está a dar-nos ou se foi ele quem as recebeu. Neste filme, Sorrentino presenteia o público e, principalmente, os admiradores de seu trabalho, com seu primeiro olhar para a arte e com o nascimento da sua paixão pelo cinema.
Este texto foi escrito a vários mãos: Tiago Resende, Maria Inês Gomes, Cátia Santos, Cláudio Azevedo, Mariana Azevedo, Letícia Mendes, Luís Miranda e Yara Medeiros.