Os Melhores Filmes de 2022

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A equipa do Cinema Sétima Arte repete a tradição, ao reunir-se para eleger a lista dos dez melhores filmes do ano. Como resultado das listas de cada um dos membros (Cátia Santos, Cláudio Azevedo, Luís Barros, Maria Inês Gomes, Mariana Azevedo, Tiago Resende, Vanderlei Tenório, Wellington Almeida) o filme eleito como o melhor do ano de 2022 é “Drive My Car”, de Ryûsuke Hamaguchi.

Adaptado a partir de alguns contos da obra “Homens Sem Mulheres” (edição portuguesa Casa das Letras, 2017), de Haruki Murakami, “Drive My Car” foi o primeiro filme japonês a ser nomeado para o Óscar de Melhor Filme; nomeado para quatro categorias dos Óscares 2022, e o vencedor do Óscar de Melhor Filme Internacional. “Drive My Car” é um filme sobre a dor da perda, sobre a culpa,  e, sobretudo, sobre o amor e a sua força de superação. Um filme com uma lisura formal muito macia e delicada, que tem a capacidade, tão rara como misteriosa, de nos tocar, ao mesmo tempo, no olhar e no coração. Tudo nele é vulnerável, como os seres e as feridas humanas abertas que expõe; e a palavra aparece no filme com uma força paradoxal, tão frágil quanto bruta, para tudo curar, redimir e abraçar.

Os critérios para a eleição dos 10 melhores filmes do ano de 2022 consideram filmes estreados em Portugal no ano de 2022, quer em salas de cinema, quer em plataformas streaming disponíveis nacionalmente, até ao dia 28 de dezembro, motivo pelo qual “Licorice Pizza” – que estreou em sala a 30 de dezembro de 2021 -, de Paul Thomas Anderson, integra o sétimo número da atual lista.

“Mato Seco em Chamas”, “Alcarràs”, “A Filha Perdida”, “Competição Oficial”, “Recreio”, “Regresso ao Pó” ou “A Pior Pessoa do Mundo” são alguns dos filmes que integraram as listas individuais dos membros do Cinema Sétima Arte, mas que acabaram por ficar de fora. Ao todo foram selecionados 58 filmes, dos quais resultaram 10 finalistas; desses, apenas quatro são filmes realizados por mulheres.

Nesse quadro, a temporada 2022/2023 tem sido auspiciosa, fora os filmes aqui citados, destacamos também:  “Tár”, do realizador Todd Field (“Pecados Íntimos”); o luminoso e bombástico “Elvis”, do australiano Baz Luhrmann (“Moulin Rouge” O Grande Gatsby”); o drama psicológico “The Whale”, do mítico Darren Aronofsky (‘Cisne Negro’, ‘Noé’ e ‘Mãe’); a tragicomédia “The Banshees of Inisherin”, do sarcástico Martin McDonagh; “Os Fabelmans”, auto biografia de Steven Spielberg; o polémico “Blonde”, de Andrew Dominik; o tocante drama “Aftersun”, primeiro filme realizado pela escocesa Charlotte Wells; o soturno “Women Talking”, da visceral Sarah Polley; entre outros.

É digno de nota, também: “Fogo-Fátuo”, de João Pedro Rodrigues, “Poeta”, de Darezhan Omirbayev, “Sempre Perto de Ti”, de Uberto Pasolini; “Hustle: O Grande Salto”, de Jeremiah Zagar; “Um Outro Mundo”, de Stéphane Brizé“Três Mil Anos de Desejo”, de George Miller; “Nope”, de Jordan Peele,“Crimes do Futuro”, de David Cronenberg, “Vortex”, de Gaspar Noé, “Ruído Branco”, de Noah Baumbach, “A Oeste Nada de Novo”, de Edward Berger, e “Emancipação”, de Antoine Fuqua.

Nesse ínterim, 2022 foi um ano de regresso à relativa “normalidade” das salas de cinema, com resultados bastante superiores aos de 2020 e 2021, mas ainda assim distantes dos números pré-pandemia (15,5 milhões em 2019). Este ano, segundos os dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), as salas de cinema em Portugal devem rondar os 9 milhões de bilhetes vendidos, quase o dobro de 2021 (5,46 milhões de espectadores). Ajudaram a este aumento das receitas e de bilhetes vendidos os filmes “Top Gun: Maverick” (o filmes mais visto do ano com mais 700 mil espectadores), “Mínimos 2: A Ascensão de Gru” (com mais de 600 mil) e “Avatar: O Caminho da Água” (com quase 500 mil espectadores).

Já no caso do cinema português a situação é bastante dramática. A discrepância entre o filme português mais visto do ano, “Curral de Moinas – Os Banqueiros do Povo”, de Miguel Cadilhe, e os restantes filmes é soberba. A comédia de Miguel Cadilhe foi vista por 314 mil espectadores, enquanto que o segundo do ranking de filmes portugueses mais vistos em 2022, “2 Duros de Roer” (também uma comédia), teve apenas cerca de 50 mil espectadores. Seguem-se “Salgueiro Maia – O Implicado” (16 777), “A Fada do Lar” (14 711) e “Restos do Vento” (11 482). É alarmante ver como apenas cinco filmes portugueses conseguiram ultrapassar a margem dos 10 mil espectadores. “Alma Viva” teve apenas 7649 espectadores, “Lobo e Cão” teve 5710 espectadores, “Fogo-Fátuo” teve 3533 espectadores e até o novo filme de António-Pedro Vasconcelos, “KM 224”, foi visto apenas por 4128 espectadores, quando noutros tempos, os filmes de Vasconcelos alcançavam mais de 100 mil espectadores.

Alguns acontecimentos cinematográficos que marcaram o ano foram: a descoberta do passado do fundador da Berlinale, Alfred Bauer, como alto-funcionário do regime de Hitler, sob a tutela direta de Joseph Goebbels; o caso do realizador iraniano Asghar Farhadi, que foi considerado culpado de plágio por um tribunal do Irão, por ter copiado o conceito do seu filme de um documentário feito por um dos seus ex-alunos; o estalo de Will Smith a Chris Rock no palco da cerimónia dos Óscares.

Destacamos ainda neste balanço do ano algumas personalidades do universo cinematográfico que morreram em 2022: o cineasta Jean-Luc Godard, a cineasta Heddy Honigmann,  o produtor e realizador António da Cunha Telles, o realizador francês Jean-Marie Straub, a atriz Angela Lansbury, o ator Jean-Louis Trintignant, o ator Ray Liotta, o ator Jacques Perrin, a atriz Eunice Muñoz, o ator Robbie Coltrane, o ator Sidney Poitier, a atriz Monica Vitti e o compositor grego Vangelis.

Poderemos talvez resumir o ano de 2022 em duas palavras: resistência e esperança. É o que esperamos para 2023, continuar a resistir e manter a esperança de um mundo melhor, mais livre.

Estes são os dez melhores filmes do ano, os mais votados pelos membros do Cinema Sétima Arte:

1. Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
2. Memória, de Apichatpong Weerasethakul
3. Lobo e Cão, de Cláudia Varejão
4. Triângulo da Tristeza, de Ruben Östlund
5. Depois do Amor, de Aleem Khan
6. O Professor Bachmann e a Sua Turma, de Maria Speth
7. Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson
8. Il Buco – Das Profundezas, de Michelangelo Frammartino
9. Petite Maman – Mamã Pequenina, de Céline Sciamma
10. O Acontecimento, de Audrey Diwan

[divider]Listas individuais[/divider]

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Petite Maman – Mamã Pequenina, de Céline Sciamma

Lista de Cátia Santos
1. Petite Maman – Mamã Pequenina, de Céline Sciamma
2. Lobo e Cão, de Cláudia Varejão
3. Ossos e Tudo, de Luca Guadagnino
4. Nope, de Jordan Peele
5. Swallow – Distúrbio, de Carlo Mirabella-Davis
6. Depois do Amor, de Aleem Khan
7. A Vida Depois de Yang, de Kogonada
8. Azor – Nem Uma Palavra, de Andreas Fontana
9. Kimi, de Steven Soderbergh
10. Corsage – Espírito Inquieto, de Marie Kreutzer
Menções Honrosas
O Perdão, de Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam
Estrada Fora, de Panah Panahi

Um ano de escolhas em que o denominador comum é a angústia e o amor de mãos dadas. A teorização é feita a posteriori e com a mão na consciência, em forma de balanço de vida e de filmes. Percorre-se o caminho da cura de feridas antigas em “Petite Maman – Mamã Pequenina”, uma viagem que não termina, mas que se determina em resolver parte dos problemas com recurso à imaginação. Enfrentam-se os fantasmas do passado na tentativa de poder divisar um futuro melhor para aqueles que vivem à margem, mas querem pertencer, como propõe “Lobo e Cão”. O amor dorido, carnal e libertador de “Ossos e Tudo”, que também não tem receio em ser como é, com tudo à mostra, até, por vezes, mostrando demais. “Nope” como veículo de reflexão sobre a herança esclavagista e o que significa ser um extraterrestre na terra onde se nasce, mas onde muitos ainda teimam em mandar outros tantos para a sua terra. Afinal, o seu país é aquele mesmo. Um mergulho doloroso em “Swallow – Distúrbio”, por onde se vive a angústia das fobias. Uma vida perfeita à espera de sentir alguma coisa, quando o espírito está tão adormecido pelas expectativas. “Depois do Amor” como antídoto para o luto, a descoberta das mentiras, a traição da confiança. O que renasce depois? É preciso que algo se parta para que outra coisa se construa. Em “A Vida Depois de Yang”, trata-se de ainda um outro luto, mas de conteúdo semelhante, revestido de problemáticas morais diferentes. A verdade de “Azor – Nem Uma Palavra” causa tantos dissabores como os exemplos referidos. Navegando por entre as palavras que nunca se dizem, procuram-se respostas de verdade para um país onde a ausência é preponderante. Em “Kimi”, não se consegue respirar convenientemente, entre a pandemia ainda presente e a galopante presença da tecnologia que tudo espia. Em última instância, querer a verdade em “Kimi” é atentar contra poderosos interesses que fazem tudo para se proteger. A liberdade abre o seu peito todo em “Corsage – Espírito Inquieto”, onde uma imperatriz aparece como mulher em fim de carreira. Uma lição belíssima sobre a indomabilidade do espírito. Ainda sobre a liberdade e a sua chocante falta: “O Perdão” e “Estrada Fora”. Ambos tecidos de uma sensibilidade e delicadeza que esconde a brutalidade da realidade de um país onde para se passar uma mensagem ainda se tem de enganar a censura.

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Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi

Lista de Cláudio Azevedo
1. Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
2. Il Buco – Das Profundezas, de Michelangelo Frammartino
3. Perante o teu Rosto, de Hong Sang-soo
4. Competição Oficial, de Gastón Duprat e Mariano Cohn
5. Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson
6. X, de Ti West
7. Os Fabelmans, de Steven Spielberg
8. A Pior Pessoa do Mundo, de Joachim Trier
9. Mulher de um Espião, de Kiyoshi Kurosawa
10. Libertad, de Clara Roquet
Menções Honrosas
O Acontecimento, de Audrey Diwan
Alcarrás, de Carla Simón

A minha primeira escolha, “Drive My Car”, do realizador nipónico Ryūsuke Hamaguchi, tem um destaque categórico em relação às restantes. Este ascendente está na misteriosa qualidade háptica que o filme possui. O filme de Hamaguchi foi vestido com as melhores sedas, o que suscita no nosso olhar uma estranha sensação de toque. Este tecido, fino e sedoso, só consegue ser alcançado pela forma como o realizador tece o objecto fílmico, através do entrelaçamento perfeito entre todos os elementos imagéticos e sonoros, e a cadência rítmica com que essa matéria urdida se desenrola no tempo para se tornar num delicado devir de sensações, uno e calibrado. Continuando na metáfora do tecido fílmico, a minha segunda escolha, “Das Profundezas”, é outro exemplo de como fazer cinema é, na sua essência, uma forma de urdir e vestir. O tecido fílmico criado pela realização de Michelangelo Frammartino não possui a delicadeza de “Drive My Car”, possui maior espessura e solidez. Os planos amplos, distantes e elevados dão a sensação de um registo indelével de câmara de videovigilância; uma câmara que parece incorporar o próprio espaço; um cine-olho capaz de sondar todas as profundezas: as da natureza e as do ser humano. Os filmes de Hong Sang-soo possuem sempre uma subtileza misteriosa capaz de transformar todo o filme; possuem algo que Robert Bresson disse sobre os Modelos: ”permanência, modo sempre igual de ser diferente”. “Perante o teu rosto” possui essa mesma qualidade, uma forma simples de ser, onde a homogeneidade aparente do filme funciona como uma superfície aquosa estagnada para que melhor se sintam as ondulações provocadas por qualquer movimento mínimo. E “mínimo” é uma boa palavra para descrever o estilo do sul coreano, sendo este filme o seu haiku mais belo e mais perfeito. A essência tanto da vida como do cinema está sempre perante o nosso rosto. Por ser impossível abordar todas as minhas escolhas, decidi focar-me mais um pouco nas minhas primeiras três. Contudo, resumirei em poucas palavras cada uma das restantes. “Competição Oficial”: a melhor surpresa de 2022 pela sua inteligência, crueza, leveza e simplicidade; “Licorice Pizza”: a beleza da forma que transpira hormonas;  “X”: o que assusta verdadeiramente nele é ser tão bem filmado; “Os Fabelmans”: a beleza e a urgência de fazer cinema; “A Pior Pessoa do Mundo”: o significado de existir é estar entre; “A Mulher de Um Espião”: um plano final com vida própria; “Libertad”: toda a liberdade é conquistada; “O Acontecimento”: ter consciência é a pior das dores; “Alcarrás”: a sensibilidade da Carla Simon.

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Um Herói, de Asghar Farhadi

Lista de Luís Barros
1. Um Herói, de Asghar Farhadi
2. Triângulo da Tristeza, de Ruben Östlund
3. Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
4. Lobo e Cão, de Cláudia Varejão
5. A Vida Depois de Yang, de Kogonada
6. Os Irmãos de Leila, de Saeed Roustaee
7. Corta!, de Michel Hazanavicius
8. Três Mil Anos de Desejo, de George Miller
9. Competição Oficial, de Gastón Duprat e Mariano Cohn
10. O Poder do Cão, de Jane Campion
Menções Honrosas
A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal
Não te Preocupes, Querida, de Olivia Wilde

Considerando todos os filmes com estreia comercial em Portugal em 2022, foi desafiante selecionar 12 títulos para uma lista que conta com obras de produção e estreia internacional de 2022 e 2021. Com uma narrativa quase perfeita, diálogos complexos e interpretações intensas, “Um Herói” de Asghar Farhadi, foi imediatamente a minha escolha para o número um desta lista; de cinema iraniano, incluí também “Os irmãos de Leila” de Saeed Roustayi, que marcou presença este ano no Festival de Cannes. Destaco também “A Vida Depois de Yang”, um filme com uma direção de arte e cinematografia sublime; e “Corta” de Michel Hazanavicius, uma comédia fantástica adaptada do filme japonês “One Cut of the Dead” de 2017. De cinema português considerei “Lobo e Cão” de Cláudia Varejão, vencedor do GDA Director’s Award no Festival de Veneza.  “Close” de Lukas Dhont e “Les Amandiers” de Valeria Bruni Tedeschi teriam feito parte desta lista, mas infelizmente não tiveram estreia comercial em Portugal em 2022.

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Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi

Lista de Maria Inês Gomes
1. Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
2. Memoria, de Apichatpong Weerasethakul
3. O Poeta, Darezhan Omirbayev
4. O Professor Bachmann e a Sua Turma, de Maria Speth
5. Bardo, de Alejandro González Iñárritu
6. O Acontecimento, de Audrey Diwan
7. Triângulo da Tristeza, de Ruben Östlund
8. Alcarràs, de Carla Simón
9. Petite Maman, de Céline Sciamma
10. Crepúsculo, de Michel Franco
Menções Honrosas
Reunião, de Fran Kranz
Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, de Daniel Scheinert, Daniel Kwan

Ryûsuke Hamaguchi teve a proeza de estrear dois filmes no mesmo ano e, se essas estreias tivessem acontecido comercialmente em Portugal neste ano de 2022, a minha primeira escolha estaria dificultada. Todavia, “Roda da Fortuna e da Fantasia” estreou nacionalmente no ano passado, pelo que, a adaptação cinematográfica de parte da obra de Murakami teve o meu maior destaque. Murakami é conhecido pelos seus triângulos amorosos e Hamaguchi capta de forma brilhante, seja pelas palavras (note-se a presença e influência de Tchekhov), seja pelos silêncios (o plano do cigarro encovado na neve), a tensão entre a pulsão de criação, a pulsão de morte, e a esperança. No final, em “Drive My Car”, subsiste sempre a capacidade de luto, de renovação, e de sublimação. É precisamente em nome da luta contra a resignação que Tilda Swinton desempenhará, brilhantemente, uma mulher que, na busca da origem de um som, embarca numa viagem de busca interior. O destaque existencialista dado à sonoplastia como meio de reflexão acerca do ruído cabe ao tão esperado “Memoria” de Apichatpong. A crítica ao ruído, à digitalização e à alienação marcam também, e profundamente, o elogio feito à língua pel’ “O Poeta”, de Däreschan Ömirbajew, numa ode à perseverança da Poesia, que atravessa tempos históricos e culturas. Diversidade cultural é o que temos presente no Professor Bachmann perante a sua turma, sendo que o documentário, de Maria Speth, é imprescindível para a compreensão daquilo que constitui a base para a equidade e para a justiça dos cidadãos, num belo exercício pedagógico de interculturalidade. Numa fase pós-pandémica creio ser natural procurarmos leituras cinematográficas que apostem em lutas de liberdade e de equidade, pelo que jamais poderiam ficar de fora os premiados “Alcarràs” de Carla Simón, bem como o “Triângulo da Tristeza” de Ruben Östlund. Se no fundo o cinema nos convoca para pensar a vida e a morte, os elogios deste ano, para que nunca esqueçamos o direito ao nosso próprio corpo, cabem à adaptação cinematográfica da obra da actual prémio nobel de literatura, Annie Ernaux, em “O Acontecimento”, de Audrey Diwan, bem como ao surpreendente “Crepúsculo”, de Michel Franco, que, ao serenar a crítica social e política corrosivas, abre espaço para um Tim Roth pronto-para-a-morte. E porque, pessoalmente, o lugar da Criança afecta-me especialmente, a “Petite Maman” de Céline Sciamma, entrega ao olhar infantil a possibilidade de luto, enquanto que em “Reunião”, de Fran Kranz, é a ausência das crianças que se faz presente pelo intenso diálogo daqueles que lidam com a morte delas. Num ano em que regressamos às salas de cinema sem restrições, pude ainda, dar umas gargalhadas, ora perdida nos multiversos de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, de Daniel Kwan, Daniel Scheinert, ora no surrealismo das falsas crónicas sobre algumas verdades, em “Bardo” de Iñárritu, e no final regressar, como sempre, à ternura daquilo que é simples.

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Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson

Lista de Mariana Azevedo
1. Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson
2. Triângulo da Tristeza, de Ruben Östlund
3. Decisão de Partir, de Park Chan-wook
4. Quando Neva na Anatólia, de Ferit Karahan
5. A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal
6. O Acontecimento, de Audrey Diwan
7. Crimes do Futuro, de David Cronenberg
8. Não te Preocupes, Querida, de Olivia Wilde
9. A Pior Pessoa do Mundo, de Joachim Trier
10. Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi
Menções Honrosas
Men, de Alex Garland
Traições, de Arnaud Desplechin

A verdade é que 2022 não foi um ano propício a ótimos filmes, mas sim a filmes medianos que que pouco ou nada nos surpreenderam. Jean-Luc Godard disse adeus à sua linguagem, os espectadores dividiram-se por todos os canais de streaming disponíveis e as salas foram sobrevivendo. Sidney Poitier já não adivinha quem vem jantar, William Hurt deixou os amigos de Alex pendurados e perdeu-se a voz de Olivia Newton-John em Physical. Mas a verdade é que cada vez há mais escolhas e o tempo que temos é limitado e muito sensível ao desperdício. Provavelmente, muito cinema não chegou ao meu olhar, mas descobri o conjunto de críticas da Agustina Bessa-Luís, Escritos Sobre Cinema editado este ano pelas edições Serralves, e ficarei eternamente grata por ler tanta construção em ironia por mm2 de caracteres. Deixo duas escolhas nesta lista: Licorice Pizza – É o grande acontecimento cinematográfico de 2022 (sabemos que estreou em 30 dezembro de 2021, mas vamos esquecer) e o meu maior destaque. Paul Thomas Anderson não consegue fazer um filme próximo da mediocridade nem de olhos fechados. Uma homenagem do realizador ao seu passado, às suas vivências e ao Verão que não queremos que acabe. É um desejo de que a nossa adolescência pudesse ser feliz e libertadora (benditos os que conseguiram), ou o que invejamos por não ter vivido essa época da mesma forma que estes jovens. Uma rapariga com um nariz de judia apostando tudo num jovem rapaz, popular, mas pouco, embriagados no amor ao som de Life on Mars, de David Bowie. Triângulo da Tristeza – O filme de Ruben Östlund que conquistou Cannes não deslumbrou a crítica especializada ou mesmo a opinião pública. Muito se escreveu e os mais conservadores acharam um atentado ao cinema clássico e ao rumo que o cinema está a tomar dando palco a filmes como o Triângulo da Tristeza. Pois o melhor que encontramos aqui é definição literal de camadas da sátira, da sátira e da sátira. As piadas que tanto indignaram a crítica não são óbvias e o realizador e argumentista sabe perfeitamente que o espectador é suficientemente inteligente para perceber a sua reacção de antemão e é isso que indignou os mais conservadores. Não foi cinema gratuito, foi gozar com quem acha que citar Chomsky ainda é para o mainstream. É uma história snob mascarada para as elites que dormem sobre a presunção.

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O Professor Bachmann e a Sua Turma, de Maria Speth

Lista de Tiago Resende
1. O Professor Bachmann e a Sua Turma, de Maria Speth
2. Alcarràs, de Carla Simón
3. Recreio, de Laura Wandel
4. Lobo e Cão, de Cláudia Varejão
5. Quando Neva na Anatólia, de Ferit Karahan
6. A Pior Pessoa do Mundo, de Joachim Trier
7. Depois do Amor, de Aleem Khan
8. O Perdão, de Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam
9. Onoda, 10 000 Noites na Selva, de Arthur Harari
10. Flee, de Jonas Poher Rasmussen
Menções Honrosas
Alma Viva, de Cristèle Alves Meira
Reunião, de Fran Kranz

Esta não é a lista que idealizei, mas é a lista possível. Ou seja, não foi um ano que tenha visto muitas estreias, pois a maioria dos filmes que vi em 2022 têm mais de 30 anos. No entanto, há um filme com mais de três horas e meia que me marcou em particular e que mereceu liderar o pódio da minha lista, “O Professor Bachmann e a Sua Turma”, de Maria Speth. Um belíssimo documentário sobre um professor muito especial e a sua turma diversificada, com origens culturais e sociais muito diferentes. É um filme de resistência, por demonstrar que é precisamente através da educação, de um ensino público sem amarras e tabus, mas sim com espírito crítico, mais humano e sensível, que encontramos a esperança para um mundo melhor, mais justo e livre. Haja mais professores como Bachmann que acreditam na escola, na pedagogia e que exercem a sua cidadania em prol da comunidade. Sobre a resistência fala também “Alcarràs”, de Carla Simón, que depois do seu sensível “Verão 1993” (o seu primeiro filme, de 2017), nos maravilha com um robusto filme sobre uma família que resiste às mudanças dos tempos e das tradições que estão a desaparecer. É uma bela história de luta, pela nossa família e pelo que é nosso por direito: terra e trabalho. Resiste também a comunidade LGBTQIA+ nos Açores, que pela sua orientação sexual e/ou identidade de género é marginalizada, num ambiente ainda muito conservador. “Lobo e Cão”, de Cláudia Varejão, é para mim o melhor filme português de 2022 e um dos melhores deste século. Um trabalho notável de ação direta com a comunidade daquela ilha, com não atores, em que o cinema consegue deixar a sua marca nas pessoas em que nele participaram, assim como no próprio espectador. “Lobo e Cão” é um filme sobre os sonhos e invisibilidades da comunidade LGBTQIA+, que deve ser visto. Outro filme que me marcou é o aterrador e impressionante trabalho de Laura Wandel, em “Recreio”, sobre o bullying na escola, sobre a violência na infância, sobre os medos das crianças, de não serem aceites, de serem rejeitadas pelos colegas. Os restantes filmes desta lista posso resumi-los às palavras de (novamente) resistência, esperança, luto, e perdão. Ficaram por ver, infelizmente, filmes como “Regresso ao Pó”, “Mato Seco em Chamas”, “Os Irmãos de Leila”, “Il Buco – Das Profundezas” ou “Estrada Fora”. Uma última curiosidade, num ano em que vimos mais filmes realizados por mulheres a chegarem aos cinemas, os quatro primeiros filmes da minha lista são todos realizados por mulheres.

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Memoria, de Apichatpong Weerasethakul

Lista de Vanderlei Tenório
1. Memória, de Apichatpong Weerasethakul
2. Depois do Amor, de Aleem Khan
3. A Tragédia de Macbeth, de Joel Coen
4. Deserto Particular, de Aly Muritiba
5. Crepúsculo, de Michel Franco
6. A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal
7. Belfast, de Kenneth Branagh
8. Reunião, de Fran Kranz
9. A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky
10. Alma Viva, de Cristèle Alves Meira
Menções Honrosas
Argentina, 1985, de Santiago Mitre
Ela Disse, de Maria Schrader

Os títulos aqui listados foram elencados de forma aleatória (propositalmente). Nisso, resolvi escolher 3 filmes que marcaram meu 2022. O primeiro é “Belfast”, realizado e argumentado por Kenneth Branagh, o propósito da história é traduzir experiências individuais em experiências universais, tanto que os pensamentos e sentimentos dele são usados para envolver o público. Os dramas pessoais se tornam ponto-chaves, não a guerra. Diferente dos filmes que frisam em detalhar o conflito civil, o argumento de Branagh mostra com mais detalhes o lado das famílias que ficaram para trás. Sei que falar de guerra é um assunto pesado, porém, todo o clima é amenizado pela figura do menino Buddy. Nessa perspectiva, o filme trata de maneira belíssima e extremamente delicada, não de uma guerra, mas sim do relacionamento de uma família e do amor imenso que esse menino sente por seus pais. O segundo é “A Tragédia de Macbeth”, de Joel Coen, que pela primeira vez, escreve e realiza um filme sem seu irmão Ethan – sei que é estranho ver Joel sem Ethan, mas convém comentar que trabalhos solos é uma tendência que muitas vezes atravessou o cinema dos irmãos, às vezes até como um exibicionismo escolástico. Coen abandona a mitologia, segue um cenário aparentemente teatral que serve para potencializar o cinematográfico com um formato de 1:37:1. A versão de Coen transforma a tragédia de Shakespeare em um noir que poderia sair da Hollywood dos anos 1940. E o faz instintivamente, com força e veemência, sem a construção cinéfila de “O Homem Que Não Estava Lá” (2001). No enredo, fica nítido o desejo de contar uma dicotomia entre racionalidade e caos com os vestígios da comédia do absurdo que sempre foi uma marca registrada da escrita dos Coens. Bom, sem dúvida, essa é a obra mais “séria” de um Coen – Shakespeare exige isso, e foi interessante ver um Coen mais sóbrio. Coen explora um tema mais subtil e melancólico, o do tempo que passa inexoravelmente. Felizmente, o desenvolvimento narrativo permanece quase totalmente fiel ao texto de Shakespeare. Por fim, o terceiro é Reunião”, filme de estreia de Fran Kranz. Nele, Kranz explora as diferentes estratégias a que as pessoas recorrem para lidar com o inexplicável, conviver com o luto e encontrar a vontade de prosseguir. O longa examina a jornada de dor, raiva e aceitação, pondo frente a frente aqueles que sobreviveram à tragédia, com um elenco brilhante composto por Ann Dowd (nomeada para BAFTA de Melhor Atriz), Martha Plimpton, Jason Isaacs e Reed Birney, que ilumina cada personagem em toda a sua vulnerabilidade e complexidade humana.

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Mato Seco em Chamas, de Joana Pimenta e Adirley Queirós

Lista de Wellington Almeida

1. Mato Seco em Chamas, de Joana Pimenta e Adirley Queirós
2. Regresso ao Pó, de Li Ruijun
3. Memória, de Apichatpong Weerasethakul
4. Il Buco – Das Profundezas, de Michelangelo Frammartino
5. Vortex, de Gaspar Noé
6. Crepúsculo, de Michel Franco
7. Reunião, de Fran Kranz
8. Laranjas Sangrentas, de Jean-Christophe Meurisse
9. Swallow – Distúrbio, de Carlo Mirabella-Davis
10. O Acontecimento, de Audrey Diwan

Menções Honrosas
Alma Viva, de Cristèle Alves Meira
A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal

2022: um ano de acontecimentos cinematográficos

Depois de dois anos com o mundo em suspenso, olhamos para 2022 com a certeza de que foi um ano com muita ansiedade, mas repleto de acontecimentos cinematográficos. Pelo menos dentro da bolha cinéfila, os filmes deste ano bateram forte. Por causa de uma regra do C7A que nos impede de incluir filmes não lançados comercialmente em Portugal, chegamos a esta lista de 12 títulos, igualmente impressionantes. Dois destes outros “acontecimentos” que ficaram de fora, e que provavelmente estarão na minha lista de 2023, são os filmes aos quais dedicarei estes parágrafos. O primeiro é o alien de Jorge Jácome, Super Natural, que de tão original e inclassificável acabou por se tornar no filme-poster que ilustrou o booklet da seção Fórum da Berlinale em fevereiro último. O filme do realizador português, que não tem propriamente um plot que possa ser resumido, não só dá continuidade a boa safra de cinema português que têm aparecido nos grandes festivais europeus nos últimos anos, como também, arriscarei o exagero, representa o ponto máximo da última década do cinema feito em Portugal.
Depois chegou uma pequena obra-prima de um senhor polaco de 84 anos, Jerzy Skolimowski, que fez uma releitura experimental e extraordinária do clássico de Bresson, Au Hasard Balthazar. Estamos a falar de EO, um espelho da miséria humana sob a perspectiva de um burro, que acompanhamos numa viagem alucinante pela Europa passando pelas mãos de vários donos empenhados em fazer da sua vida um inferno, até chegar a um encontro inusitado com madame Isabelle Huppert.
Outro filme deste ano que também abordou a miséria humana de uma forma nunca vista antes, talvez o único “filme evento” a competir com Skolimowski na última edição de Cannes, foi o desnorteante Pacifiction do catalão Albert Serra. Um conto sinistro sobre poder colonial, ansiedades e paranoias modernas mas que é também um filme poético e transcendental sobre a descoberta do outro. Uma experiência cinematográfica grandiosa e de tirar o fôlego, e que deve ser obrigatoriamente vista no grande ecrã quando estrear nos cinemas daqui.
Mas o grande acontecimento cinematográfico de 2022, para este que vos fala, chegou na forma de uma distopia tropical, passada nos subúrbios de Brasília. A produção luso-brasileira Mato Seco em Chamas, realizado a duas mãos pela portuguesa Joana Pimenta e o brasileiro Adirley Queirós. O filme é um épico de quase três horas, que borra as linhas do que é ficção e documentário, sobre uma gangue de mulheres que sequestra um oleoduto para vender gasolina em uma favela. Isso num Brasil austero e apocalíptico, mas ainda governado por Jair Bolsonaro. O filme estreou em fevereiro na Berlinale e depois ganhou o prémio máximo do festival Cinéma du Réel e do Indie Lisboa. E já nasceu um clássico moderno: um filme urgente e desesperado, que refletiu tão bem o Brasil (e o mundo) desiludido de 2022. Olhando para os filmes que mais me marcaram este ano, chego a conclusão de que o mundo está realmente de pernas para o ar, mas o nosso vazio existencial nunca esteve tão bem representado no imaginário cinéfilo.

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