Foi a 29 de novembro de 1963, há precisamente 60 anos, que estreava em Lisboa um absoluto clássico do cinema português e um marco no movimento do Novo Cinema, “Os Verdes Anos“(1963) de Paulo Rocha. A primeira longa-metragem do realizador conta a história de Júlio (Rui Gomes), um rapaz de 19 anos que se muda para Lisboa em busca de novas oportunidades. Um acidente fá-lo conhecer Ilda (Isabel Ruth), empregada doméstica, que como ele, procura um futuro melhor. A amizade entre ambos rapidamente se transforma num romance, mais forte por parte de Júlio, que procura em Ilda um refúgio à sua inadaptação ao ambiente hostil da cidade moderna. Este amor desmedido acaba por conduzir os protagonistas à tragédia.
“‘Os Verdes Anos’ é o primeiro filme das produções Cunha Telles que, pode dizer-se, começavam com o pé direito: o filme seria premiado em Locarno, o nome de Paulo Rocha surgia nas principais revistas de cinema europeias como uma revelação. Visto hoje, ‘Os Verdes Anos’ tem o grande mérito de ser um documento precioso sobre Lisboa do princípio dos anos 60, o seu provincianismo, o desespero e a sufocação de uma geração jovem. Para o cinema, o filme revelava ainda a sensibilidade de um compositor (Carlos Paredes) que construiu um tema musical que ficaria célebre (…). Pela primeira vez depois de muitos anos, este filme sintonizava-se com a realidade portuguesa, espelhava-a. Era um vento de mudança no cinema que por cá se fazia. Mas a mudança não estava só na respiração temática. Acontecia também (…) na respiração fílmica, na atenção aos movimentos de câmara, à realidade plástica dos planos, aos tempos.”
Jorge Leitão Ramos, in Dicionário do Cinema Português 1962-1988
Realizado por Paulo Rocha, produzido por António da Cunha Telles, direção de fotografia de Luc Mirot e banda sonora de Carlos Paredes, tem como protagonistas dois jovens atores estreantes, Rui Gomes e Isabel Ruth, acompanhados por profissionais como Paulo Renato e Ruy Furtado. Foi rodado, na então, zona nova da cidade, nas imediações do café-restaurante ‘Vá-vá’, nos prédios do Segurado, local onde o realizador vivia, sendo a cave do prédio o décor da sapataria onde Júlio trabalhava; na Avenida dos Estados Unidos; na zona da Avenida de Roma; e na Quinta da Bela Vista.
O filme retrata uma Lisboa na qual dominam grandes construções, avanços tecnológicos e novas tendências; os protagonistas e as suas narrativas afastam-se da comédia portuguesa, e retratam uma realidade social mais crua, de uma sociedade lisboeta em mutação. Ao longo do filme, são visíveis influências nouvelle vague francesa e do neo-realismo italiano, quer pelo tema, a inadaptação social num ambiente repressivo, quer pelas personagens que apresenta.
“O Pão e o Vinho” (1959) de Ricardo Costa, é frequentemente mencionado como um ponto inicial, antecedendo a efervescência criativa e inovação cinematográfica que caracterizariam o movimento, mas é na década de sessenta, com obras como “Os Verdes Anos” e “Dom Roberto” (1962) de José Ernesto, que o Novo Cinema Português se consolida.
O filme questiona os modelos da sociedade lisboeta e as diferenças sociais. Júlio e Ilda representam uma classe que se encontra numa zona de enormes transformações, onde as suas identidades são limitadas pelo espaço em que habitam e pela arquitetura que os rodeia. Júlio representa a migração rural para a cidade, simbolizando a transição entre tradição e modernidade. Ao chegar a Lisboa, enfrenta desafios ao tentar se adaptar a um ambiente urbano e moderno que não domina. Assim como a sociedade representada no filme, Júlio é uma força que fervilha até eclodir.
A cidade é apresentada como repleta de armadilhas, ilusões, vitrines e reflexos que representam uma falsa liberdade. Júlio trabalha numa cave como sapateiro, e o que vê da janela do seu local de trabalho é o nível mais raso da cidade, fazendo-o sentir-se aprisionado no local que reflete a sua classe social. Por várias vezes, Júlio é enganado pelas portas de vidro e vitrines da cidade. Numa das cenas iniciais, perdido por entre os prédios de Lisboa, pede indicações a um estranho e acaba encurralado no hall de entrada do prédio de Ilda. Neste hall de entrada, todo em vidro, Júlio vê um pássaro entre as flores, representando a ilusão de liberdade da qual Júlio será vítima. Na sequência da cidade universitária, Júlio esbarra-se contra o vidro da porta de uma das faculdades, representando a barreira invisível que o impede de alcançar uma vida melhor, de estudar, de conseguir sair do nível raso em que habita.
“Na sua primeira deambulação por Lisboa, Júlio entra num hall de entrada de um prédio entre plantas – é a entrada da casa onde Ilda habita. O pássaro é Júlio, como é óbvio, e as paredes de vidro que o limitavam vão funcionar como a primeira ratoeira em que Júlio cai. Todo o filme desenvolve este tema das barreiras invisíveis – são as montras, os espelhos dos restaurantes, as imagens nos ecrãs de televisão. A cidade é perversa porque propõe os objetos como objetos desejáveis ao mesmo tempo que institui entre nós e esses objetos uma distância intransponível.”
COELHO, Eduardo Prado – Vinte anos de Cinema Português (1962 – 1982). Biblioteca Breve / Volume 78, 1983. Página 19.
Ilda é uma figura urbana que representa a vida na cidade, servindo como contraponto ao contexto rural de Júlio. Ela domina o espaço urbano com certa facilidade e não cai nas armadilhas da cidade. Ilda habita o nível médio de Lisboa, no apartamento onde trabalha, ao contrário de Júlio, que está limitado ao nível mais baixo da cidade. Manifesta ambição e procura absorver a realidade que deseja alcançar, assiste a desfiles de moda na televisão e desfila para Júlio com as roupas da patroa. No entanto, na sequência da cidade universitária, Ilda demonstra ter consciência da sua condição social e das limitações que esta lhe impõe, nomeadamente a oportunidade de estudar. Ao mesmo tempo, é uma mulher emancipada e independente, recusa o pedido de casamento de Júlio por não ver o casamento como forma de atingir honra e respeito no contexto social. O crime que resulta dessa recusa revela não apenas a incapacidade de Júlio em lidar com a solidão na grande cidade, mas também a resistência e a incompreensão da emancipação da mulher na sociedade moderna.
Esta primeira longa-metragem de Paulo Rocha representa, assim, a transição social e cultural da década de sessenta, o choque entre a tradição e a modernidade, entre a solidão e o urbanismo; é também uma crítica social e política, ao representar a realidade lisboeta e distanciar-se do cinema português promovido pelo Estado Novo. É uma expressão artística de um estilo cinematográfico sublime, que deve ser por nós aclamado. Segundo Eduardo Prado Coelho, é um filme de retorno, de verdade, de ingenuidade.
“Ingenuidade do protagonista, ao confrontar-se com uma cidade matreira, cheia de truques ardis, tendo ele apenas como arma a sua juventude e a habilidade das suas mãos; a ingenuidade do próprio filme, que, a partir de um esquema narrativo extremamente simples, se desenvolve sobretudo como uma deambulação pelas ruas de uma Lisboa nova; ingenuidade do cinema português, que com ‘Dom Roberto’ e ‘Os Verdes Anos’, procurava, em reação a um longo período de abastardamento, um terreno de verdade, mesmo que para tal fosse necessário um retorno ao mais elementar dos sentidos e das formulações.”
COELHO, Eduardo Prado – Vinte anos de Cinema Português (1962 – 1982). Biblioteca Breve / Volume 78, 1983. Página 17.