Na beleza há sempre uma pontinha de tragédia, nas dores do crescimento a maravilha da descoberta e da aprendizagem, na vontade de açambarcar o mundo todo numa dentada por vezes demasiado voraz.
Luca Guadagnino pôs toda a gente a equacionar a possibilidade de o canibalismo ser apenas uma caraterística como ter as pernas tortas ou um feitio difícil, num ato de racionalização que antes já tinha funcionado muito bem para o amor entre um homem feito e um rapaz quase em idade legal.
Não é por acaso que o realizador menciona ter feito o filme a pensar em Timothée Chalamet, com quem estabeleceu uma relação de enorme confiança, criatividade e admiração. O ator cresceu para lá do seu papel de adolescente magoado e é em “Ossos e Tudo” um profissional dos sentimentos recalcados, embora nisso não esteja sozinho.
Ao longo das estradas da América profunda dos anos 80, das ilusões, dos restaurantes de beira da estrada e da felicidade falsa, Lee (Timothée Chalamet) deambula de corpo em corpo desejoso de saciar uma sede infinita que lhe parece inevitável e natural como qualquer outra necessidade física.
A necessidade que Lee e Maren (Taylor Russell) – a jovem rapariga com quem se cruzará numa das suas caçadas – têm por ingerir os outros é tão física quanto metafórica, que se desengane o espetador se pensa que Guadagnino não queria mesmo falar sobre o que é ser-se canibal – no filme estão, até, incluídos elementos de investigação real.
É um desejo irreprimível de fincar o dente numa vida que se escapa entre os dedos, presa nos mesmos traumas de infância, nos mesmos arrependimentos, nas mesmas questões de identidade e crescimento que o resto do comum dos mortais.
“Ossos e Tudo” é um road movie em aparência mais imediata que esconde uma grande e irresistível história de amor e, em última instância, a procura natural de dois jovens adultos em conhecer a sua verdadeira identidade, as suas raízes, a razão da sua existência apartada de toda a considerada normalidade, de que se vêm excluídos.
Estes canibais que se vão encontrando aos poucos na sua procura pelo sentido da vida, reconhecem-se pelo cheiro, como os animais, procuram, no fundo, uma identificação com um grupo reconhecível com quem possam partilhar experiências e a ligação emocional que nem a ingestão de carne humana consegue colmatar.
Um bando de gente que não se enquadra no resto do mundo, mas que não se censura por ser diferente, apenas pela ocasional dor de consciência por ter falhado para com a família, eventualmente pela inevitabilidade de ter tido de comer algum dos seus membros.
Em última instância, consumir o outro é uma necessidade tão premente quanto o vazio emocional deixado pela pesada herança do seu berço. Metaforicamente falando, o medo da perda é tão assoberbante que apenas integrando o outro em si mesmos se pode colmatar momentaneamente esse vazio.
A juventude, com ou sem canibalismo, é, por si só, um processo de descoberta tão desordenado e caótico quanto visceral, centrado no ego e no totalitarismo da vontade, por isso o que Maren e Lee fazem nada mais é que essa busca transposta para uma realidade ficcionada e levada ao extremo da imaginação.
Guadagnino refere que o choque não é o principal no seu filme e, de facto, se “Ossos e Tudo” for despido dos seus momentos mais sangrentos não mais é que o retrato de uma série de pessoas que procuram uma ligação mais ou menos profunda de amor e identificação.
É pedir muito ao espetador que ignore o facto de que grande parte dos personagens do filme sejam canibais, mas esse exercício desmistifica muito do efeito sensacionalista que possa ser considerado como leitmotiv da história que, aliás, é adaptada do livro homónimo de Camille DeAngelis.
“Ossos e Tudo” poderia perfeitamente ter evitado alguns julgamentos, mas é uma prova viva de uma das suas outras lições, a de que o amor não julga, por muito sentimentalista que isso possa soar. Intrinsecamente, os homens e mulheres de Guadagnino não são bons nem maus e os seus atos, não sendo julgados, são apenas ações com consequências.
O espetador fica colocado perante a enorme tarefa de eliminar o moralismo da história, se assim o quiser considerar. Muito do trabalho ao ver “Ossos e Tudo” passa precisamente por aquilo a que é possível retirar valor de julgamento e extrair apenas o mais puro dos sentimentos dos mais execráveis monstros.
Por debaixo de numerosas camadas de personalidade, Guadagnino escondeu um filme tão sensível e refinado quanto desafiador, é preciso não esquecer que em alguns momentos o estômago pode não aguentar a sugestão dos seus protagonistas a degustar as suas refeições humanas.
“Ossos e Tudo” é raro, à semelhança dos seus canibais, mas belíssimo no modo como os expõe, como os ama, como ama, aliás, a humanidade que se esconde nas franjas da sociedade, que não vive de acordo com as normas, mas que valoriza a verdade mesmo quando não é das visões mais desejáveis e bonitas.
Enquanto acarinha os seus monstros sensíveis, Guadagnino filma com a delicadeza de alguém que toca um instrumento frágil. Encontra beleza no abandono, nas paisagens perdidas, nos objetos mais insuspeitos, envolvendo-os a todos numa fotografia tão realista quanto sonhadora, num equilíbrio que acolhe bem as contradições.
A banda sonora original, de Trent Reznor e Atticus Ross, é o complemento perfeito para a linguagem de amor e fome de Guadagnino, por entre escolhas certeiras de temas não originais, percorrendo os bons nomes do synth pop dos anos 80 ou chamando uns Kiss ou uns Joy Division para alguns dos momentos mais marcantes do filme.
“Ossos e Tudo” é a nova versão do tão desejado amor vincit omnia que percorre a obra de Guadagnino, mas desta vez o realizador arriscou cruzar certos limites de que talvez não se esperasse tanto. Afinal, para se fazer um filme em que não se deixam nem os ossos para os animais, é preciso que se façam grandes sacrifícios: é tudo em nome do amor.