Em “Paraíso” (2021), documentário de Sérgio Tréfaut (“Raiva”, 2018), encontramos um lugar de encontro, o encontro do Eu que, através dos signos do corpo, se permite em abertura ao Outro. Aqui assistimos aos signos do corpo do olhar e da voz, essencialmente da voz que trespassa todo o espaço e, enigmaticamente, une todos os indivíduos desta comunidade de fala musicada e partilhada. Acontece que, quando nos abrimos em voz, mais ou menos melodiosamente, penetramos num nível porventura mais profundo que o da consciência e deixamos vir à tona as letras e o sentido das músicas que foram compondo a banda sonora das nossas histórias de vida, ou pelo menos das memórias que delas temos, ou ainda, dos desejos de vida que ficaram por cumprir.
Inerente às histórias de vida dos cantores amadores desta comunidade, está uma feliz e uma outra trágica coincidência de vida. Felizmente, todos chegaram à longevidade da vida o bastante para se alegrarem mais com a vista retrospectiva da vida, do que com a ansiedade do que está por vir. Não quer com isto dizer que não haja espaço para o projecto, como a celebração de um noivado, e os felizes aniversários. Tragicamente, o espelho retrovisor por onde, gentilmente, somos convidados a olhar neste documentário, traduz-se na imagem de uma geração injustiçada fruto de um país desigual.
Aquilo que Tréfaut consegue captar é a forma mais marcante de resistência ao ego crescente do narcisismo característico das ditaduras: a miscelânea de canções populares brasileiras numa orquestra comunitária. Contrastante com o silêncio ensurdecedor que pautou os corredores do Palácio do Catete (hoje Museu da República), a residência oficial da presidência do Brasil, no Rio de Janeiro, entre 1867 e 1960, bem como aquilo que ecoou numa nação marcada pelo genocídio da alteridade, forma-se, agora, uma comunidade da fala e da escuta, presente nos belos e românticos jardins desse Palácio.

Esta comunidade reúne-se, e todas as vozes, idosas e menos idosas, tendem para se juntar num convívio com pessoas que cantam da alma, e que, igualmente, param para ouvir cantar, num exercício de ética da escuta. Deste modo, a capacidade de resistência, perante a opressão vivida social e politicamente, é convertida numa espécie de antidepressivo metafísico, que se dá de todas as vezes que aqueles homens e mulheres pegam em si e nas suas memórias auditivas e rompem a sua casca narcísica, abrindo-se à possibilidade da partilha pública de sofrimento, e também de amor.
É isso que este espaço público consagra, é o Paraíso de eliminar a solidão presente naquelas vidas e, fundamentalmente, de eliminar a distância pessoal de si para si mesmo, pois quando cada uma daquelas pessoas canta, a par da plateia que a escuta, ela dá-se a chance a si mesma de sociabilizar a sua dor e a sua alegria. Esta socialibilização da dor e da alegria sob a forma grupal é o que enlaça todas as histórias de vida que Tréfaut acompanha, numa melodia do comunitário que toca desde as vozes que o preenchem, até à denúncia que este documentário representa sob a forma de homenagem. Todos os gestos que compõem este documentário são de resistência e, por serem pessoais, não deixam de ser um acto político contra a surdez da sociedade ruidosamente apática e alienada que encontramos fora deste jardim-paraíso.