Os jornais de Hollywood saudaram a notícia de que “Parasitas”, do sul-coreano Bong Joon-Ho, cruzou o limiar dos 10 milhões de dólares americanos, na sua quinta semana em sala. (Para efeitos de comparação, o thriller aprovado por Cannes e pérola da crítica do ano passado, “Em Chamas”, de Lee Chang-dong, fez apenas $719.000 nos EUA; até mesmo a obra prima de Park Chan-wook, “A Criada”, mal raspou os $2m em 2016.). Um feito raro para o cinema legendado, um mercado difícil nos Estados Unidos. O próprio Joon-Ho alertou para essas adversidades, quando recebeu o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro: “Quando vocês superarem a barreira de uma polegada das legendas, serão introduzidos a tantos outros filmes incríveis”. “Parasitas” também se tornou no filme coreano com a maior bilheteira já lançado na América do Norte, superando o “D-War” de Shim Hyung Rae, lançado em 2007, que manteve o título durante 12 anos.
É com este “Parasitas” que Bong Joon-Ho regressa às suas origens, após duas experiências no cinema internacional – “Snowpiercer – Expresso do Amanhã” (2013) e “Okja” (2017), obras com potencial, mas cujos universos revelaram ser demasiado grandes para o formato. Joon-ho, no seu país natal, filma uma tragicomédia sobre o capitalismo e a sociedade contemporânea, e explora os arquétipos há muito conhecidos no cinema, mas que numa eventualidade narrativa como a Coreia do Sul, ganham um significado especial. “There’s no place like home.”
“Parasitas” segue duas famílias: os Kim, sobrevivem numa pequena cave a dobrar caixas de pizza; e os Park, uma família abastada, que emprega o jovem Ki-woo (Woo-sik Choi), para dar explicações de inglês à sua filha mais velha, Da-hye (Ji-so Jung). Ki-woo consegue arranjar trabalho para a sua irmã, para ser tutora de arte do filho mais novo da família. Depois, os irmãos conseguem com que o pai fique motorista dos Parks, e a mãe acaba por ser contratada como empregada doméstica, todos fingindo que não se conhecem e que não são família.
Na biologia, um parasita é um organismo que “vive às custas de outro organismo, obtendo dele alimento e causando danos”. O termo também é usado popularmente para caraterizar aquele que “vive à custa alheia, que explora o outro”. Aqui o parasita é outro, é social. É o domínio do mais sedento por dinheiro. A pobreza é o parasita, escondida na periferia da enorme cidade de Seul, que sonha com propriedades rococó e estabilidade social e financeira.
Antes de relacionar “Parasitas” com trabalhos como “Feios, Sujos e Malvados” (1976), de Ettore Scola, e “Viridiana” (1962), de Luis Buñuel, a fábula de Joon-Ho lembra-me primeiramente o seu vizinho nipónico, Hirokazu Koreeda, que concebeu “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões”, e que, curiosamente, também ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 2018. “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões” reinventa uma classe desempregada, oculta do resto do mundo, e que só consegue engalfinhar os limites desse mundo através do parasitismo. “Shoplifters” é doce, ao passo que “Parasitas” é destrutivo sobre a lacuna entre as “colheres sujas” e as “colheres de ouro” – gíria coreana associada à hierarquia de classes -, que cada vez mais é um abismo social.
O guião inspirou-se na própria vida real do realizador do filme. Quando Bong Joon-ho estava nos seus 20 anos, vindo de uma família modesta, deu explicações de matemática ao filho de uma família bastante rica num bairro exclusivo em Seul. Joon-ho fora apresentado a essa família pela sua namorada — agora sua esposa — que dava explicações de inglês a esse mesmo rapaz.
Não é à toa que a fábula de Joon-ho, para além do sucesso além-mar, se tornou também num hit doméstico. Na Coreia do Sul, a desigualdade social, aliada aos escândalos de corrupção por parte da elite, cria uma frustração nos sul-coreanos. O caso de Ki-woo é arquétipo da camada jovem coreana: estudantes universitários que nasceram em famílias de baixos rendimento e que vivem em cubículos, os chamados “goshi-won” no país, porque não têm dinheiro para pagar uma casa; e os já cursados que se arrependem de ter estudado porque a sua família não tem influência – as possibilidades de emprego estão, infelizmente, ligadas a influências familiares. Porque lá, as “colheres de ouro” chegam mais longe com a ajuda da riqueza e estatuto dos pais. É apenas a exposição de um sistema que coloca famílias umas contra as outras numa impiedosa competição por recursos cada vez mais escassos. A família não se escolhe, é um Songbun concebido por conta do acaso. (Songbun é um sistema de categorias usado na Coreia do Norte para classificar os seus cidadãos, baseado no contexto político, social e económico dos antepassados diretos bem como no comportamento dos parentes, sendo usado para determinar se uma pessoa pode ser confiável, dando-lhe oportunidades dentro do país. A Coreia do Sul diz-se oposta à sua vizinha nortenha, mas haverá realmente diferenças entre as duas nações? Países opostos atraem-se.)
Nas palavras de Joon-ho, o filme é uma comédia sem palhaços, e uma tragédia sem vilões. Não há definições do bem ou do mal. Toda a gente é boa e má ao mesmo tempo. É o que é, e isso seguramente é muito pior. A barreira entre parasitas e hospedeiros torna-se muito subtil.
Essa subtileza não é explícita em “Parasitas”. Song Kang-ho, um dos atores-fetiche do realizador, que teve papéis em “Memories of Murder” (2003), “O Hospedeiro” (2006) e “Snowpiercer – Expresso do Amanhã” (2013), é Ki-taek, o patriarca dos Kim. Ele, a esposa (Jang Hye-jin, de “Poesia”, 2010), e os filhos (Park So-Dam, de “O Veterano”, 2015, e Choi Woo-sik, de “Train to Busan”, 2016) vivem numa cave em constante iminência de ficar inundada, ao passo que os Park ficam acima do nível da água, em torres de dinheiro e coisas fúteis. Joon-ho classifica “Parasitas” como um filme-escada: as escadarias que vemos ao longo do filme são retrato da pirâmide de classes – elemento com significado semelhante ao da água: esta flui até ao quintal da família Park e termina por inundar a cave dos Kims.
O cinema de Joon-Ho foi sempre rico de semiótica anticapitalista: a criatura incontrolável de “O Hospedeiro” não distinguia os ricos dos pobres quando os devorava, e alimentava a ideia da relação parasita/hospedeiro; em “Snowpiercer – O Expresso do Amanhã”, o conflito de classes é explicado através da força de operários que são divididos em categorias ao longo de uma locomotiva que segue caminho numa Terra em período glacial; e na fábula de 2017 , Okja é uma super-porca perseguida por uma empresa multinacional, numa alegoria ao mundo moderno.
Ao longo do enredo, as duas famílias lutam pelo mesmo espaço, pela mesma prisão, através da camuflagem ou da total ingenuidade, luta essa que finalmente explode em sangue no terceiro ato, na festa de aniversário do filho dos Park – um circo montado, um circo de aparências. Esses ziguezagues por dentro das divisões da mansão são essencialmente os “procurar saber” o lugar que cada um ocupa na sociedade, procura essa que conduz a um choque entre a pobreza extrema e a riqueza ostensiva, a um choque de assassino – uma consciência de classe, que tem um desenlace um pouco fantasioso, mas bem ao estilo do novo cinema coreano.
Para Joon-ho, a mobilidade social é uma coisa utópica: a subida de classes é animalesca, uma simbiose de predadores/presas. Os ricos comem os pobres, mas os pobres comem os ricos. Quem tem mais apetite? No parasitismo, há apenas a sobrevivência. E o parasitismo existe em todo o lado: está história passa-se em Seul, mas poderia ser facilmente deslocada para outras partes do mundo – porque miséria, existe-a em toda a parte e ninguém a quer.