Os vírus não têm rosto, não lhes conhecemos a natureza, nem lhes sabemos prever o comportamento em absoluto. A aprender algo no confronto com um rosto sem rosto, é de que nada é quantificável, calculável ou previsível. A vida escapa a isso e, na sua essência, torna-se maior naquilo que oculta. Não são medidas humanitárias que estão a ser tomadas por parte dos estados (membros ou não), são, fundamentalmente, medidas político-económicas. A crise de saúde pública por covid-19 que atravessamos ainda não abalou o sistema capitalista, só o fez tremer. Ainda estamos todos (os com poder) a preocupar-nos com quanto orçamento restou depois desta crise, e não tanto com que forma de estar no mundo. Enquanto as formas de produção e de consumo não mudarem radicalmente, o maior risco que corremos, existencialmente, é o de continuarmos a ser cobaias neste confronto cego e desigual. Enquanto os Estados não se unirem numa frente consertada, é a lógica monetária que ditará a sobrevivência do mais forte. E isso não tem nada de humanitário.
Como chegamos até aqui é a questão mais pertinente a ser feita à história da nossa espécie e, no filme Passámos por Cá/ Sorry We Missed You (2019), realizado por Ken Loach, descobrimos o alerta que dá fundamento a grande parte da resposta, a saber, a crise social que a economia de marketing fez brotar. É o próprio realizador, mesmo sem saber se se tratava do seu último filme, quem afirma a necessidade de combater o grau crescente de exploração a que, contemporaneamente, os trabalhadores se sujeitam. Se no seu filme Eu, Daniel Blake/ I, Daniel Blake (2016) a crítica mordaz incide sobre a incapacidade de o Estado assistir os cidadãos, sob pretexto de uma burocracia asfixiante, neste seu outro drama, a figura estatal perde foco para os mais recentes negócios empresariais de outsourcing. Parece-nos, portanto, que a visão de esquerda do realizador e do argumentista Paul Laverty está mais afinada do que nunca e acompanha a evolução sub-reptícia da nova forma de exploração, a saber, a autoexploração.
A personagem principal, Ricky Turner (Kris Hitchen), dá corpo a esta noção de autoexploração através da vontade que expressa em poder adquirir um negócio franchisado para ter mais honorário, mais autonomia e, acima de tudo, não perder o orgulho de ter de pedir ajuda. O modo como desistimos da ajuda estatal retrata já a falência do Estado Social tão evidente em Eu, Daniel Blake. Portanto, é indissociável que a presença do Estado diminua quando os mecanismos de assistência social estão mascarados de caridade, ao invés de serem uma garantia de justiça e do cumprimento dos direitos dos trabalhadores.
Cansado de saltar de emprego em emprego e da sua condição de pai de uma família vítima da precariedade imposta pela crise financeira de 2008, Ricky apresenta-se como o funcionário implacável e “bom menino de olhos azuis”. Há algo de profundamente perverso no modo como as empresas repercutem o discurso ilusório da autonomia e do reconhecimento, a troco da alienação. Quer isto dizer que em nome de uma boa prestação e da sobrevivência da sua família, a par do sonho de terem uma vida melhor, aquela que seria a vida prometida pelo marketing da atual conjuntura económica, Ricky personifica todos aqueles trabalhadores que se exploram a si mesmos e assim se transformam em mercadoria.
A mensagem deste filme é de esquerda, tal qual a ideologia assumida pelo realizador e tão presente na sua filmografia (o cinema socialista de esquerda), a inspiração marxista, mas a validade da sua pertinência ganha peso à medida que a economia dá provas da causa de desrealização nas atividades dos trabalhadores. Por outras palavras, a alienação começa quando, quanto mais produzem, mais os trabalhadores estão afastados da riqueza que produzem. A genialidade da critica do filme consiste em mostrar o modo como, diferentemente da relação de dominação por parte do explorado face ao explorador, é o próprio indivíduo que se explora a si mesmo ao convencer-se que é no seu trabalho autónomo e produtivo que se encontra a sua autorrealização e auto-otimização.
O desenrolar do filme reveste-se da vertiginosa viagem laboral que Ricky percorre em simultâneo com o abuso dos seus direitos laborais, bem como da destruição dos laços familiares. “Mato-me a trabalhar” é o lema de vida desta personagem e o mais claro slogan da nossa economia de marketing atual. A mensagem é clara e que ninguém se engane, em tempos de crise (e em todos os outros), a economia capitalista visa unicamente o lucro, pelo que a instrumentalização dos indivíduos começa quando lhes é vendido o sonho primordial de que podem ser empresários de si mesmos, quando, na verdade, entraram em competição total. Subjugados por um sensor digital que devem manter feliz, como avisa o supervisor, Ricky e os seus colegas espelham as políticas económicas do ego, ou seja, as que centram os colaboradores em torno de si mesmos, colaboradores que disputam entre si por atenção e que são incapazes de reconhecer o primado do Outro. Para sobreviver num clima de produção neoliberal é preciso o Eu ser cego ao Outro. É isso que explica que mais nenhum colaborador daquela empresa de distribuição apoie Ricky, no clímax de desespero total e de agressão ao supervisor, em face à total ausência de clima de gratificação.
O filme denuncia-nos o perigo iminente da instrumentalização do Outro, a saber, destrói qualquer possibilidade de gratificação e de união. Alienados de nós mesmos e dos outros, somos incapazes de resistência e de revolução e nisso consiste a receita para o sucesso das empresas e das políticas neoliberais. Instrumentalizados por uma economia que dissimuladamente faz-nos crer que somos todos especialistas em espalhar sorrisos, na verdade, nunca estivemos tão distantes da possibilidade feliz de justiça, pois quando somos forçados à prestação de rendimento, acabamos por deixar de sentir. Esperemos que o final do filme não se cumpra, que não soçobremos em nós mesmos até deixarmos de sentir o nosso próprio corpo, corpo cansado, neurótico e deprimido, entretanto constituído como extensão da maquinaria de produção.
Perante a constatação de que não estamos preparados para os vírus nem para as crises que enfrentamos e de que elas resultam de anos de investimento de políticas neoliberais, a ruidosa sociedade do cansaço faz-se sentir e é urgente que se faça escutar. Estamos saturados de andar a reboque da economia atual, de que o capitalismo selvagem seja o nosso penso rápido para estancar o medo adiado. É tempo de a economia andar a reboque de uma humanidade fraterna e recíproca. Para tal, concordamos com Ken Loach, Arte e Política têm de unir-se.
Para a Sofia.