«Peregrinação» – A terrível escolha de transformar uma história épica num musical

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Este filme é polémico por várias razões. Começando pela acusação de plágio endereçada a João Botelho, depois de se descobrir que na realidade se tinha apoiado em grande parte na obraO Corsário dos Sete Mares”, de Deana Barroqueiro, não se limitando apenas a uma fiel adaptação da obra original de Fernão Mendes Pinto.

Em “Peregrinação” deparamo-nos com uma forma muito peculiar de transpor um livro para o cinema. João Botelho aposta num conjunto de escolhas que, a meu ver, destroem completamente uma das maiores e mais importantes narrativas de viagens da história. A sua importância não é apenas portuguesa, é universal. Não há nenhum registo da época tão preciso e detalhado sobre várias civilizações como este, vivido por uma só pessoa que contra todas as possibilidades viveu aventuras e desventuras integrado em culturas desconhecidas no Ocidente. “Peregrinação” é uma obra incontornável sobre muitos pontos de vista. É uma janela única para compreender a história do século XVI, retrata sociologicamente populações da Ásia e de África, num período em que as suas culturas ainda não estavam contaminadas pelo pensamento ocidental.

Em cima de tudo isto, temos um homem, com todos os problemas que decorrem da existência humana. Ele não é um europeu que conquista outros povos, é um aventureiro obrigado a perceber as diferentes culturas por onde passa para sobreviver. Ele não se impõe, ele aprende os costumes locais primeiro para puder ser ouvido. E no decorrer destas aventuras, ele sofre no corpo e na alma e vive um processo contínuo de adaptação para sobreviver sem perder a razão, sem perder a fé nas suas capacidades, sem desistir de si mesmo, de viver e de amar.

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Este era um livro com tudo o que é necessário para ser digno de uma cariz épico, digno de uma elevação honrosa e gloriosa da nossa nação. Infelizmente não é isso encontramos.

Logo nos minutos iniciais do filme, deparamo-nos com um coro de marinheiros que surge a cantar como se de um musical se tratasse. Ainda assim, poderíamos dar o benefício da dúvida e pensar que este seria um momento exclusívo e com a mera finalidade de criar uma entrada arrojada para assim agarrar o público. Pois bem, estaríamos muito enganados, porque esta decisão não foi esporádica e repetiu-se inúmeras vezes ao longo de todo o filme, constituindo-se um erro colossal, que quebrou o ritmo e a dinâmica da história. A semelhança deste coro de marinheiros com a tipologia de um coro de uma tragédia clássica é inegável, o que contribui para acentuar a teatralidade da narrativa.

As músicas e a própria letra das mesmas são extremamente interessantes e admiráveis, mas o modo como são introduzidas não funciona. Uma alternativa possível teria sido a limitação das músicas a um plano estritamente não diegético. Assim, não se comprometeria a autenticidade da obra e obter-se-ia um resultado muito mais verosímil e envolvente.

Contudo, os erros não ficam por aqui. A própria representação é falível, visto que muitos dos atores adotam um registo tão teatral, que a pouca credibilidade que ainda poderia existir se desfaz através do modo exagerado como entoam as palavras.   

Mas não fiquemos apenas pelo registo da verbalidade, analisemos os próprios gestos e ações. Há uma cena particular que, embora não tenha grande relevância para o conteúdo global da história, me ficou na cabeça pela sua execução de tal modo artificial que me causou perplexidade pela estupidez que comportava consigo. Nessa cena o marido da mulher que andava a ter relações extra conjugais com o jovem Fernão Mendes Pinto, descobre que anda a ser traído e mata a mulher. Tal ato era extremamente previsível, mas não é a previsibilidade que se critica, mas sim a expressividade do ator em questão, que parece completamente apático, sem um “pingo” de raiva, frustração ou tristeza, nada. Apenas apatia e duas facada, nada mais. O próprio encadeamento sequencial da história por vezes torna-se confuso e impede que o espectador que nunca leu o livro consiga acompanhar os acontecimentos e aquilo que os interliga.

Mas ainda assim, salva-se a fotografia de Luís Branquinho, que sustenta todo o filme com a sua incrível beleza pictórica. Destaco o momento em que Fernão Mendes está na China e fala com a sua amante à janela. Os tons rosados e o próprio ambiente além da janela onde é possível ver pássaros a voar se traduz numa ideia quase de sonho, que antecipa a despedida de um mundo no qual Fernão Mendes foi tão feliz.

“Peregrinação” tinha tudo para dar certo, uma boa história, cheia de peripécias fantabulásticas e sensacionais à espera de serem contadas de forma épico-histórica. Porém, João Botelho decidiu inventar e “inovar”, segundo a frase que considera ter sido o seu suporte base para toda a concepção do filme: “A novidade deleita, a variedade tira o fastio.”. O que João Botelho não percebeu ao interpretar esta expressão foi que a própria obra de Fernão Mendes Pinto, em si própria já dispunha de toda essa variedade que ele necessitava, enquanto a novidade lhe cabia a si, enquanto realizador conceber, transpondo e adaptando toda essa riqueza que se encontrava no papel.

f2f1a865fa9803689e9de67676d259cc378deaec 4RealizaçãoJoão Botelho
ArgumentoJoão Botelho
Elenco: Alexander David, Catarina Wallenstein, Jani Zhao, José Mora Ramos, Maya Booth, Rui Morisson
Portugal/2017 – Ação/Aventura
Sinopse
: Em março de 1537, aos 26 ou 28 anos, Fernão Mendes Pinto, fugindo à miséria e estreiteza da sua vida, partiu para a Índia em busca de fama e fortuna. Assim começa este filme de aventuras que relata as desventuras e os sucessos deste escritor aventureiro que, no decurso de 21 anos em que esteve no Oriente, foi “13 vezes cativo e 16 ou 17 vendido” e, em vez da fortuna que pretendia, lhe foram crescendo os trabalhos e os perigos. Aventureiro sim, mas também peregrino, penitente, embaixador, soldado e escravo, Fernão Mendes Pinto foi tudo e em toda a parte esteve. “Por graça de Deus” regressou salvo para nos deixar um extraordinário livro de viagens, numa escrita hábil e fulgurante, carnal e violenta, terra-celeste. Esse livro de viagens editado três dezenas de anos após a sua morte transformou-se no primeiro best-seller da língua portuguesa, sendo traduzido e publicado em todos os reinos da Europa.

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