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“Piccolo Corpo”, de Laura Samani: magia e misticismo no caminho do amor incondicional

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“Piccolo Corpo” é o muito promissor filme de estreia da cineasta italiana Laura Samani nas longas metragens. Passou por Cannes (onde esteve na Semana da Crítica), Toronto e em 2021 foi o filme vencedor da 14ª edição da Festa do Cinema Italiano. Embora o percurso pelos festivais e os prémios sejam um incentivo e reconhecimento, certo é que “Piccolo Corpo” vive muito dos seus próprios trunfos.

Ali se conta a história de uma jovem mulher, Agata, que vive no nordeste de Itália em inícios de 1900 e dá à luz um nado morto. Segundo a tradição católica, Agata perde, por isso, o direito de batizar a filha e de a poder enterrar convenientemente, tornando-se portadora de um segredo que é também enorme motivo de vergonha.

Determinada a contrariar esse destino, Agata acaba por tomar conhecimento de um local nas montanhas, a norte da sua comunidade piscatória, onde as crianças podem ser ressuscitadas pelos segundos necessários para que tomem o fôlego e possam ser batizadas.

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Irá deixar a sua comunidade, contra todas as opiniões e maus augúrios, e iniciar uma viagem dura e longa que a levará a encontrar-se com alguém determinante: Lynx, um rapaz selvagem e solitário que conhece o território e se oferece para a ajudar, em troca do misterioso conteúdo da caixa de madeira que carrega às costa e é, no fundo, o caixão onde transporta a filha.

“Piccolo Corpo” é um filme de espinhos e de pessoas espinhosas, mal amadas, criadas todas elas nos elementos e pelos elementos, eivadas do medo e da superstição próprias de quem não conhece mais do que o que o tempo, a religião, a experiência e o que os homens lhes ensinaram.

Agata contraria todos os cânones e regras impostas, mesmo as que determinam o rígido papel das mulheres naquela sociedade isolada. Simbólica e tacitamente, vai estilhaçar essas crenças em nome do amor mais puro, mostrando não só que é possível às mulheres atravessar montanhas proibidas como ultrapassar as muito mais rígidas barreiras que as grupos criam em relação ao que está para lá dos horizontes mais próximos e do desconhecido.

A relação com a água é determinante e toma aqui muitíssimas interpretações possíveis, herdeiras dos tempos mais recônditos e das crenças mais imemoriais. Agata entra mar adentro para esconjurar o mal, antes do parto, algo que, afinal, não lhe confere qualquer proteção: as águas onde a sua filha se desenvolve são as mesmas onde se afoga.

Há uma ligação dual com a água: tanto representa vida primordial e ligação entre mãe e filho, como a morte e o portal de conexão com o submundo, como que repetindo fortes ideias proto-históricas que se esperariam já obsoletas, mas que continuam, na entrada para o século XX, tão presentes como sempre estiveram. A água é ainda espelho, reflexo e mergulho nas profundezas, verdade e morte.

Irredutível em que a filha não se quede no limbo criado pelos homens, Agata sai do seu elemento natural, de onde apenas retira o natural sofrimento que espera a todas as mulheres, e parte para o desconhecido. Ali a espera não só o mesmo tipo de entendimento do que é uma mulher e daquilo de que é capaz, como também se lhe juntam os perigos com os quais ainda não se havia deparado.

A base de “Piccolo Corpo” assenta em grande parte nos secretos laços do matriarcado, onde se esconde alguma solidariedade, mas nem sempre fraternidade e ajuda desinteressada, já que toda a gente espera algo em retorno. Em quase todas as cenas determinantes, há algo que não é nomeado, tanto por ser tabu como porque faz parte do entendimento tácito dos códigos imemoriais que ligam os seres humanos.

Agata é um fôlego de novo ar num entorno que precisa de nomear, de apontar, de ultrapassar o preconceito em dar nome ao que está morto quando o que está vivo também não é nomeado. A sua própria libertação do trauma será feita através do enfrentamento dos estigmas e do medo.

Agata foi nomeada e seu nome faz suspeitar amor e respeito: é uma pedra preciosa, símbolo de quanto a mulher é preciosa enquanto geradora de vida, não apenas no sentido mais literal e físico, mas igualmente metafísico. Em si, contudo, encerra, tal como a água, um papel dual: subindo para a barca que a vai transportar, Agata encarna ainda o papel de Caronte, conduzindo a sua própria barca em direção ao submundo.

Ao atravessar o rio, o único esquecimento em que incorre é o do passado, que vai ficar onde é devido e a ele não voltará senão quando tiver de concluir a derradeira viagem. Deixa para trás a ambiguidade, a dualidade, a crueldade, em tempos duríssimos para as mulheres.

“Piccolo Corpo” diz muito de e sobre as mulheres, as únicas que ainda apresentam algum tipo de compaixão e ligação emocional, sendo que os homens estão praticamente ausentes do filme: esporadicamente são vistos e ouvidos, mas não são, definitivamente, importantes nesta que tem sido uma história preponderantemente de mulheres desde o início das sociedades humanas.

“Piccolo Corpo”, de Laura Samani, é uma pedra preciosa de temas difíceis tratados com mestria e elegância, nunca fugindo de falar sobre eles e dando-lhes forma e corpo em tempos em que o otimismo eterno não permite tristezas. O seu mergulho nas profundezas da dor, da morte, mas também, por oposição, do significado da vida, da cura do trauma e do desenvolvimento a partir das cinzas é admirável, cheio de coragem e inspiração.

Celeste Cescutti enquanto Agata, uma atriz completamente estreante, e Ondina Quadri enquanto Lynx conferem ao filme doses necessárias e equilibradas de fogo e água, de coragem e vulnerabilidade, trazendo dimensões e camadas que fazem de “Piccolo Corpo” um filme que não é nem simplista nem emocionalmente explorador.

Ao invés, tanto aquelas duas interpretações como as dos restantes atores, maioritariamente amadores, gentes locais, falantes de um dialeto semelhante a um mantra ou um encantamento, trazem para o filme uma estrutura emocional poderosíssima, e, ao mesmo tempo, um realismo que vai para lá da mera mímica ou encenação de época.

“Piccolo Corpo” é uma muito bela surpresa de cinema que se vai desenvolvendo a cada momento, após se findarem os créditos. Rememorá-la só acrescenta mais significado, interpretações possíveis e essa é, com toda a certeza, a prova de que é um filme que fica com quem o vê por muito mais tempo que o da sua duração factual.

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“Piccolo Corpo”, de Laura Samani: magia e misticismo no caminho do amor incondicional
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