À entrada, diversas cabeças reuniam-se em redor de algumas caras conhecidas do cinema, fingindo fazer tempo para a hora exata da exibição. Não se podia esperar algo diferente de uma sessão de estreia de distribuição hollywodiana – sempre um bom chamariz para a casta cinéfila lusitana se reunir em dia de semana e desfilar a sua sumidade intelectual contra o cinema de massas. O filme em cartaz é “Pobres Criaturas” (“Poor Things”), a mais recente longa-metragem de Yorgos Lanthimos.
Após a estreia de “Barbie”, no verão do ano passado, ter ultrapassado os mil milhões de dólares em receita – com a adicional ajuda de marketing “conceptual” de Barbenheimer – seguiram-se algumas menções ao aproveitamento da luta ideológica em prol do aumento de cabeças por sala. Ora em meios de comunicação tipicamente políticos, como AbrilAbril (onde Manuel Augusto Araújo menciona Buñuel, Adorno e Horkheimer para fundamentar a compressão cada vez maior entre os conceitos de publicidade e cinema), ora por intermédio de diálogos do dia-a-dia entre público curioso cuja única filiação partidária é a arte cinematográfica, a verdade é que a presença da causa feminista como tema principal de um filme é apenas a ponta do iceberg do declínio da criatividade nesta arte.
A estreia de “Poor Things” aparenta, em primeira instância, quebrar não só com o método de criatividade regular de Yorgos Lanthimos, como também com a distribuição e processos de produção. A história de Bella Baxter (Emma Stone) é retratada com o fish eye já anteriormente explorado em “The Favourite” e Lanthimos faz questão de manter o seu compromisso com planos picados estrategicamente localizados nos cantos dos cenários. No entanto, mesmo mantendo as objetivas de grande angular e a simplicidade nos recursos técnicos (como foi mencionado por Carminho através da cena onde pôde participar e assistir), é na narrativa e densidade dramática das personagens que Lanthimos se refugia num novo espaço criativo. Existe uma alternância entre guiões individuais (caso dos seus filmes mais antigos) e conjuntos. Primeiro com Efthymis Filippou (entre “DogTooth”, “The Lobster” e “The Killing of a Sacred Deer”), e depois com Tony McNamara em “The Favourite” e “Poor Things”. O pormenor que diferencia o método criativo de Lanthimos é o facto de o seu mais recente filme ser adaptação de obra homónima alheia. A história do Cinema de Autor já prevê o que estas adaptações podem provocar na carreira de um realizador, pois são poucos os casos de grande sucesso ou orgulho realizados. À exceção de “The Shining”, podemos ver casos como o de David Lynch, que confessa ter-se arrependido das condições em que foi realizado “Dune”, adaptação do romance de Frank Herbert. Seja por motivos relacionados com a produção da longa-metragem, ou posteriormente com as expetativas que essa adaptação pode criar no público, esta escolha acaba por ser um risco, ou, o contrário, parte de um propósito maior. Além de na terra-natal de Alasdair Gray, autor da obra original, o filme ter sido alvo de escrutínio devido a um desrespeito ao material de origem e as suas raízes escocesas, também por entre a crítica foi questionado o propósito do feminismo usado na profundidade de caráter de Bella Baxter – questão que não é colocada em filmes anteriores de Yorgos Lanthimos.
A referência a “Barbie” no início deste artigo não é colocada em vão. O filme insistente na sobrevivência capital da boneca, é resumidamente caracterizado como um filme “que se move do momento mais foleiro imaginável para um episódio de activismo político sem sequer pestanejar”. A produção que alternou, inseguramente, entre a Universal Pictures, mais tarde Sony Pictures e só finalmente acolhida pela Warner Bros, faça diferença ou não, na verdade foi salva pelo pouco que poderia ser salvo: pela realização de Greta Gerwig. Apesar da realizadora de “Little Women” refrescar o cariz hollywodiano destas produtoras e as sucessivas distribuições e modelos cansativos, pode também dizer muito sobre as prioridades criativas de Gerwig. A discussão de que a adaptação de Barbie ao grande ecrã deve ser realizada obrigatoriamente com agregação de temas como o feminismo e a masculinidade tóxica é pouco questionável. No entanto, a forma como estas causas são exploradas é o que de crucial se pode criticar. Além de “Barbie” ser fruto de uma manipulação capitalista e uma tentativa de sobrevivência da Mattel a novos formatos de lucro massivo, como obra cinematográfica, o novo filme de Gerwig intensifica a degradação criativa a que o cinema, lentamente, se submete. Numa nota felizmente ainda longínqua, realizadores como Yorgos Lanthimos parecem apostar nesta corda bamba viciosa e lucrativa. Apesar de “Poor Things” ser uma surpresa para os críticos do cinema de Lanthimos, os sinais deste rumo na sua carreira já se avizinhavam. Entre “The Lobster”, com co-produção de 4 milhões de dólares, e “The Favourite”, com orçamento de 15 milhões, a oportunidade de uma produção como a de Bella Baxter, de 35 milhões, seria quase impossível não acontecer. Independentemente de se tratar de ideias originais ou adaptadas, a aceitação de produtoras de grande nome provavelmente dependia da descoberta sexual e feminista extravagante de Bella Baxter. Enquanto “The Lobster” permanece no grupo de filmes em que o realizador possui grande parte da patente criativa, inserindo o espetador num mundo quase impossível de relação, “The Favourite” diferencia-se, baseia-se em relações de individualidades conhecidas, de maior proximidade com o público. A personagem de Emma Stone, em “Poor Things”, além do modelo criativo de Alasdair Gray, é inspirada pelo misticismo de Drácula e Frankenstein. Juntando a estas peças publicamente fáceis de ser acolhidas, Lanthimos parece render-se e apostar nas causas prováveis de uma personagem tão real na sociedade quanto a Barbie.
Não só o filme nos transmite esta sensação de repetição e espelho do pós-modernismo, e, no caso de Lanthimos uma exploração da reação a priori desejada, como também este é o resultado de uma estrutura capitalista alienante que provoca estas mudanças temáticas na arte. Na década de 90 Fredric Jameson já o mencionava, em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, que “qualquer observação virtual sobre o presente pode ser mobilizada para se investigar o próprio presente, e pode ser utilizada como sintoma e índice da lógica mais profunda do pós-moderno, que assim se torna, impercetivelmente, a sua própria teoria e a teoria de si mesmo”. Isto levanta questões de natureza desconhecida. Terão os realizadores chegado à conclusão por vontade própria criativa, em função das novas exigências de público, ou serão os criativos “um sintoma que se transformou na própria doença”, como Jameson refere? Num último pensamento, as intenções criativas pouco conseguem ocupar espaço na esfera, e pouco acabam por importar. A pouca profundidade de pesquisa feita sobre Portugal para um dos capítulos da narrativa de “Poor Things” é propositada, reflexo de falta de tempo, ou resposta ao nível intelectual do público? Quais os objetivos das cenas ocas de sexo e como se explicam as dificuldades em retratar o comunismo e a fidelização partidária? Se entrarmos pela questão da (pouca) profundidade emocional da personagem de Baxter, subimos um nível de complexidade, mas que no fundo levar-nos-á à mesma conclusão de Jameson.
Apesar de “Poor Things” colocar Lanthimos cada vez mais absorvido na bolha pós-modernista rodeada por produtoras e exigências de cariz de massas, ainda não é o suficiente para se dizer que perdeu o pé na maré. O potencial do realizador é testado e talvez só poderá ser conclusivo num próximo filme pós mundo maravilhoso de Poor Things. Juntando às críticas negativas, no The New York Times é mencionado que “Poor Things é sobre a humanização de um monstro, mas como Lanthimos não está interessado em qualidades humanas menos óbvias e mais simples, como a gentileza, o filme torna-se progressivamente monótono, plano e aborrecido.” A escolha da personagem de Bella Baxter acaba por ser uma opção segura que adia a totalização da crítica de Manohla Dargis, pois o contexto individual da personagem, este ser adulto cujo cérebro foi substituído e levado a um reset na aprendizagem e socializações, justifica, em parte, o pouco envolvimento de Lanthimos com questões de autoconhecimento. Fica em aberto a questão: se a profundidade filosófica e feminina de “Poor Things” fosse maior, qual seria o número de espectadores? Permanece assim uma reflexão agridoce que nos deixa na indecisão relativamente aos propósitos comerciais e conceptuais de Lanthimos.
É certo que numa longa-metragem de mais de duas horas e meia de rodagem haveria mais do que tempo para Lanthimos explorar o interior de Baxter em vez de se preocupar repetidamente em cenografias surrealistas semelhante a “Beau is Afraid” de Ari Aster. Quando vemos salas Nimas e Lusomundo recheadas de gargalhadas e espanto em momentos de pouca criatividade de Lanthimos, percebemos que talvez este pós-moderno mundo comece a ser uma quinta-feira à noite habitual. E que, talvez o que Jameson caracterize como doença, seja o novo combustor de criativos, que com todo o seu potencial, se exploram a si próprios.