Recordo em 2017, ainda nos primeiros dias do 70.º Festival de Cannes, um encontro com Takashi Miike (durante o press junket ao seu, na altura mais recente filme, “Blade: A Lâmina do Imortal”), onde, para além das perguntas genéricas e relacionadas com o projeto que o cineasta promovia na Croisette, questionei-o quanto ao seu ritmo de trabalho (é de relembrar que Miike ostenta mais de uma centena de filmes creditados como realizador, diversas vezes concretizando 2 ou 3 obras por ano e de diferentes géneros). Ciente que me responderia algo no sentido de um Manoel de Oliveira, o qual assumia a reforma como o fim da sua vida (efeméride: o português nunca parou de dirigir até ao termino da sua existência), o nipónico referiu a sua prolixidade como um dever: “Apenas eu e Sion Sono fazemos filmes maduros na indústria japonesa, mais ninguém o faz”.
Dois anos mais tarde, Miike regressaria à Riviera Francesa para apresentar mais um dos seus trabalhos (neste caso em numa secção paralela ao tão grandioso Festival de Cannes – Quinzena de Realizadores) – “Primeiro Amor” – o que viria a ser vendido em antemão como mais um exercício do cinema yakuza pelo realizador. Em várias entrevistas e conferências, não só neste evento como nos festivais que prosseguiu, Miike referia um subgénero tão popular no Japão – os yakuzas – como espécies ameaçadas de extinção por um cinema cada vez mais imaturo e o desinteresse das camadas mais jovens.
E estas suas preocupações são evidentemente transportadas para a obra, como podemos constatar nos primeiros momentos em que o nosso improvável herói (um jovem pugilista que nunca conhecera o afeto) cozinha ovos num dos part-times num restaurante chinês, enquanto na sala de refeições poder-se-ia ouvir uma mulher lamentar pela decadência e falta de honra da máfia japonesa, trazendo à memória Ken Takamura (1931 – 2014), o popular ator deste tipo de cinema.
É um lamento incorporado de um homem (que ao lado do seu conterrâneo Takeshi Kitano), persistem em pregoar géneros corrompidos pelas tendências, e desvanecidos pelas novas gerações. “Primeiro Amor” é uma carta aberta que demonstra compaixão a essa mesma arte, requisitando a violência gráfica e lúdica do realizador como uma espécie de mensageiro. Porque o filme é, isso mesmo, um envelope para um conteúdo, muitos mais … como diria, emocional e romântico – “a luz da manhã não combina com malfeitores” – é um réquiem disfarçado dos gigantes que compuseram a memória e as influências de Miike, receando o desaparecimento dessas em simultâneo com a sua própria existência.
Portanto, por mais decapitações ou grotescas, mas igualmente engenhosas, sequências de ação possa apresentar, este refinado filme malapata é um tributo que implora por mais um dia de vida. Takashi Miike faz das suas, é bem verdade, é um positivo burlão que entrega-nos um romance jovial como atalho a todo um leque de uma indústria passada, e quiçá desintegrada.
Se é o único a fazer “filmes maduros” no Japão atual, isso é discutível. Porém, é dos poucos que se apresenta com um assumido amor ao cinema, e obviamente, com as devidas perversões.