“Querido Diário: Edição Cineclubes” é uma rubrica original dos criadores do Cinema 7ª Arte que remete o leitor para uma viagem de vespa por Portugal fora, numa demanda dos cineclubes ainda ativos. De cidade em cidade, iremos conhecer cada cineclube e os seus nativos que se esforçam por partilhar a paixão pela sétima arte.
Continuamos a nossa viagem pelo país de cineclube em cineclube. Esta é a nossa décima primeira visita, na vila Joane, que pertence ao concelho de Vila Nova de Famalicão. Joane é hoje um dos centros mais desenvolvidos de Famalicão e onde o sector da industria se tem mais desenvolvido. Com 15 anos de existência, o cineclube de Joane tem-se vindo afirmar como um projecto de sucesso na região.
Legenda: C7A – Cinema 7ª Arte / CCJ – Cineclube de Joane
C7A: O que motivou a criação de um cineclube na vila Joane? Porque não no centro da cidade de Famalicão?
CCJ: Aquando da criação do Cineclube de Joane, em Setembro de 1998, o concelho de Famalicão apenas dispunha de uma sala com exibição regular de Cinema, no centro da cidade e explorada pela Lusomundo. No entanto, o Centro Cultural de Joane continha uma sala com equipamento de projecção em película, pelo que a opção de instalar o Cineclube em Joane surgiu da vontade de oferecer a um concelho com cerca de 150.000 habitantes uma programação de Cinema mais diversificada (quanto à proveniência das obras e dos géneros – documentário, animação), aliada à óptima localização geográfica de Joane, num ponto nuclear do Minho: a cerca de 10 km de Famalicão, 15 km de Guimarães, 20 km de Braga e a 30 km do Porto. Entretanto, após a inauguração da Casa das Artes de Famalicão, as sessões do Cineclube de Joane foram transferidas para a principal sala de espectáculos do concelho, em Março de 2002.
C7A: O cineclube de Joane tem, desde o inicio, apostado de forma inteligente na criação de debates, workshops e ciclos de cinema. A formação de novos públicos é para vocês uma prioridade?
CCJ: A formação de público constitui o núcleo da nossa motivação como programadores, sendo que este aspecto assume uma especial importância, atendendo a que, aquando da formação do cineclube, esse trabalho estava por desencadear. Por isso, conjugamos a produção recente (últimos 3-4 anos) com ciclos que percorrem a história do Cinema, relevando os seus principais protagonistas – os cineastas, com destaque para a rubrica Já Não Há Cinéfilos?!, para facultar ao espectador um misto de fruição com a aprendizagem da linguagem que o Cinema vem erguendo ao longo da sua história, como quem apreende a estruturação de um património.
C7A: Sabemos que também tem investido no programa “Cinema para as Escolas”. Sentem que os alunos dessas escolas têm absorvido o gosto de ver cinema e, em especifico, outros cinemas que de outra forma não teriam acesso?
CCJ: Temos procurado através da rubrica “Cinema para as Escolas” estimular a relação com professores e alunos, privilegiando sessões em meio escolar, de forma a constituir propostas que, por um lado empreguem o Cinema como material de utilização pedagógica (com ligação a disciplinas específicas), e por outro lado lancem as primeiras sementes na descodificação da linguagem do Cinema por parte dos alunos, deixando-lhes propostas que permitam uma antecâmara para se tornarem espectadores exigentes e formados. Atendendo a que nunca tivemos financiamento para esta rubrica, a sua concretização não tem tido a intensidade que desejamos, e estamos por estes dias a trabalhar num projecto que poderá impor um maior ritmo a esta actividade, através de uma parceria com um dos mais relevantes agrupamentos de escolas do nosso concelho.
C7A: O público adere com facilidade à vossa programação? Vocês criam uma programação pensada em exclusivo para o público?
CCJ: Uma sala de Cinema só faz sentido com público, pois trata-se de uma experiência colectiva, e entendemos que a adesão às nossas sessões é satisfatória. Quando concebemos a nossa programação temos um público-alvo identificado, mas não acreditamos em programações “a pedido”, nem em escolhas previsíveis. A nossa obrigação é propor programações que cumpram os nossos critérios, que pretendem exibir Cinema de Autor, nos moldes propostos pelos Cahiers du Cinéma, com a maior diversidade de latitudes e de género possível e alicerçado numa continuidade da nossa programação, como quem pretende obsessivamente abraçar todo o Cinema do Mundo, e com a crença de um espectador disponível para novas cinematografias, para ser desafiado. A programação deste mês de Novembro parece-nos elucidativa: Cinema oriundo do Brasil (Sudoeste de Eduardo Nunes), uma coprodução europeia-australiana, Lore, estabelecida na Alemanha no fim da 2.ª Guerra Mundial, A China em Transformação com dois filmes de Jia Zhang-Ke, um dos grandes autores franceses, Jean-Claude Brisseau, com A Rapariga de Parte Nenhuma, e finalmente, a partir de uma encomenda nossa, a apresentação do incontornável The Kid de Chaplin com banda sonora pelos Bueno.Sair.Es.
C7A: É difícil para vocês criar uma programação de cinema mais independente e com clássicos do cinema, sem que não apareça muito público?
CCJ: Não nos parece complicado gerir a expectativa da adesão do público às nossas sessões. Nos últimos anos, tal como todos os exibidores, quer sejam grandes ou pequenos, temos registado uma diminuição da afluência de público, sendo que as razões estão diagnosticadas: a adesão por parte dos espectadores a filmes através de outras plataformas, designadamente a televisão por cabo e a internet, com dowmloads muitas vezes de obras amputadas e privadas de satisfatórias condições de imagem e som. Trata-se de um trabalho de resistência e de coerência, mas também de pedagogia junto do espectador, que não ilude as dificuldades do sector, bem visíveis num concelho em que a nossa sala é a única que exibe Cinema com uma periodicidade regular. Respondemos a estas dificuldades promovendo com intensidade as nossas escolhas, junto dos mais variados públicos e disponibilizando uma programação mensal com pelo menos cinco sessões, em que a fidelidade dos espectadores é premiada: a quota mensal custa 3,5 euros, o que representa um custo por sessão inferior a 1,0 euros!
C7A: Costumam passar algum cinema português?
CCJ: O Cineclube de Joane exibe cerca de dez sessões por ano de produção portuguesa, procurando programar obras produzidas pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), mas também obras que não integraram o circuito normal de distribuição, atribuindo especial importância ao género documental. Procuramos uma interacção especial com os autores do cinema português, promovendo o convite a realizadores para debates e masterclasses em volta das suas obras. A programação de cinema português constitui uma das principais âncoras da nossa actividade, pois não existe formação de público sem um adequado conhecimento do património cinematográfico do nosso país.
C7A: Atualmente, em época de muita crise, onde as pessoas tem menos dinheiro para ir ao cinema, como conseguem gerir as contas do cineclube?
CCJ: A gestão do orçamento do Cineclube é feito sempre de forma meticulosa, procurando acautelar dificuldades futuras, de forma a não comprometer a continuidade da nossa programação, que desde a nossa primeira sessão, em 23 Setembro de 1998, não conheceu nenhuma interrupção. O nosso orçamento vive essencialmente de três grandes fatias: as quotas dos nossos associados, o protocolo com a Câmara Municipal de Famalicão (ininterrupto desde 1999) e os concursos anuais do ICA.
C7A: Qual a importância deste cineclube para a vila de Joane e qual a importância dos cineclubes hoje na sociedade?
CCJ: Pensamos que o Cineclube de Joane tem uma notória importância no concelho de V. N. de Famalicão, principalmente desde a sua transferência em 2002 para a Casa das Artes de Famalicão, procurando também que a sua relevância assuma um âmbito regional, através de parcerias de programação que extravasam o nosso concelho. Nos dias de hoje, com a escassez de uma oferta que se dedique à programação diversificada, enquadrável no âmbito do Cinema de Autor, e com a exibição apenas garantida pelos multiplex que se estabelecem apenas em grandes centros urbanos e exibem sempre os mesmos filmes, o papel dos cineclubes é fundamental, para garantir a exibição dos filmes que permanecem ocultos do público, mas também para continuarem a formar olhares e públicos e a mostrar-lhes o magnifico baú sem fundo que constitui a história do Cinema.
C7A: Sentem falta de apoios do estado ou das câmaras municipais para os cineclubes?
CCJ: Como referimos acima, o Cineclube de Joane tem o apoio da Câmara Municipal de Famalicão desde 1999, o que tem sido fundamental no financiamento e exibição das sessões semanais, mas também na rubrica Cinema Paraíso, sessões de cinema ao ar livre durante o Verão, que nas 14 edições anteriores já permitiu a realização de mais de uma centena de sessões, em cerca de 25 locais, atendendo a que a iniciativa assume uma itinerância pelo concelho de V. N. de Famalicão. Relativamente ao ICA, a Rede de Exibição Alternativa (REA) da qual fazemos parte desde o primeiro concurso (em 2002), é um programa importantíssimo no financiamento das sessões regulares (com especial enfoque no cinema europeu e português), que apoia cerca de 20 estruturas (maioritariamente cineclubes), e que deveria ser dotado de uma maior regularidade na assunção e remuneração dos compromissos, pois desde 2002, em duas das anuidades o concurso simplesmente não abriu (em 2012, por exemplo), o que impõe precaridade e instabilidade às estruturas programadoras.
C7A: Acham que deveria haver uma maior relação de parceria entre outros cineclubes do país?
CCJ: Pensamos que existem parcerias estabelecidas e outras pontuais, sendo muitas delas relevantes. Da nossa parte, procuramos entendimentos com estruturas com quem desenvolvemos afinidades e por forma a fazer chegar as programações a mais locais e mais públicos. Exemplificamos com uma parceria que desenvolvemos há alguns meses com o Cineclube Aurélio Paz dos Reis e a Confederação, que permitiu levar o ciclo Herzog-Kinski – Queridos Inimigos (seis filmes, em parceria com o Goethe Institut) a Braga, Famalicão e ao Porto, com textos escritos para o ciclo e com sessões com apresentação e debate.
C7A: O cineclube só vive da dedicação e trabalho dos voluntários?
CCJ: Sim, todo o trabalho de programação e gestão das actividades do Cineclube de Joane é feito exclusivamente em regime de voluntariado, pelos membros dos órgãos sociais eleitos.
C7A: Película ou Digital?
CCJ: Pensamos que o filme deve ser exibido, preferencialmente, no formato em que foi produzido. Insistimos em cogitar que o melhor formato de exibição continua a ser a película, pois a projecção digital assume-se, pelo menos por agora, como uma pobre réplica. No entanto, como esta transformação tecnológica é imparável e não foi salvaguardada uma transição para as salas que não estão equipadas com projecção digital (cerca de metade dos filmes que nos interessam programar não estreiam em pelicula), esperamos que em breve seja possível dispor desse equipamento na Casa das Artes de Famalicão.
C7A: Um dos principais objetivos de um cineclube é o de discutir e refletir sobre cinema. Acha que os cineclubes hoje tem cumprido essa missão, para além da simples exibição?
CCJ: O nosso pequeno país possui um conjunto muito rico e diferenciado de cineclubes: alguns apostam em programações mais arrojadas esteticamente, outros mostram-se mais dedicados à história do Cinema, outros num determinado nicho de género ou cinematografia particular, outros em programas de grande alcance didáctico em parcerias regulares com escolas, outros que se transformaram em mostras e festivais de Cinema, outros ainda que se dedicam à produção (em especial de documentários). Uma boa parte dos cineclubes promovem, com regularidade, debates e outras iniciativas que fomentam reflexões em volta do cinema, ora contemporâneo, ora através da sua história, despoletando, assim, discussão de temas não só do âmbito do Cinema e da sua produção, mas também dos mais variados assuntos que inquietam as sociedades do nosso tempo. Pensamos que o que é importante é que cada estrutura seja coerente com os seus objectivos e práticas, num permanente estímulo entre programadore(s) e público(s).
C7A: Espaço “Mensagem do Presidente”: (este espaço é oferecido ao presidente do cineclube para deixar uma pequena mensagem aos sócios/voluntários/público em geral. É um espaço livre e da inteira responsabilidade do presidente.)
CCJ: Eduardo Lourenço costuma dizer que substituiu a fé religiosa por uma crença absoluta no Cinema, atravessando as portas do Cinema Clássico de Hollywood. Estamos com ele nesta convicção desmesurada no Cinema e, por isso, as portas da nossa congregação estão abertas para a celebração semanal das quintas-feiras, na Casa das Artes de Famalicão: estão todos convidados, para as sessões semanais e para as outras.
Próxima paragem: Cineclube de Avanca
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Uma ideia original de
Cinema 7ª Arte
Texto de
Tiago Resende
Revisão de
Eduardo Magueta