“Querido Diário: Edição Cineclubes” é uma rubrica original dos criadores do Cinema 7.ª Arte que remete o leitor para uma viagem de vespa por Portugal fora, numa demanda dos cineclubes ainda ativos. De cidade em cidade, iremos conhecer cada cineclube e os seus nativos que se esforçam por partilhar a paixão pela sétima arte.
Porto, obrigado por nos receberes. Esta paragem é marcante para nós, em especial para mim (Tiago Resende), que nasci cá. Foi aqui que nasceu o cinema português, em 1896, pelas mãos de Aurélio Paz dos Reis, apenas um ano depois dos irmãos Lumière terem apresentado o cinematógrafo em Paris. Em 1912, surge, no Carvalhido, os estúdios da Invicta Film, que viriam a tornar-se num dos maiores e mais bem equipados estúdios de cinema da Europa. Nos anos 20, a indústria cinematográfica portuguesa cresceu muito graças aos estúdios da Invicta, pois atraíram técnicos e realizadores estrangeiros de toda a Europa, como Rino Lupo e George Pallu. Em 1945, nasceu o Cineclube do Porto (o primeiro em Portugal), que em pouco tempo se tornou num dos maiores da Europa e “a ter mais sócios do que o FC Porto”. Portanto, o Porto foi uma cidade crucial para o desenvolvimento da arte cinematográfica em Portugal, sempre na linha da frente. Hoje, isso já não acontece.
Legenda: C7A – Cinema 7.ª Arte / CCP – Cineclube do Porto
C7A: Como nasceu o cineclube?
CCP: O cineclube nasce a partir de um grupo de alunos do liceu Alexandre Herculano no Porto. Depois de uma viagem a Barcelona, onde esteve em contacto com o movimento cineclubista, regressa para criar um cineclube de verdade. A 13 de abril de 1945, criam o Clube Português de Cinematografia. Os seus objetivos foram claros desde o início, pretendia-se defender o cinema com interesse particular pelo cinema português. Este trabalho seria feito através da projeção de filmes “de interesse cineclubista” e da publicação de um boletim. Rejeitando à partida quaisquer fins religiosos ou políticos, procurava formar a cultura cinematográfica dos associados.
C7A: Pegando numa pergunta já colocada por outros, reintroduzimos a questão: “Que segunda cidade do país é esta que já teve um dos maiores cineclubes da Europa e onde agora há pessoas para tudo, menos para o cinema?”
CCP: No Porto existe público para o cinema. Não existe é cinema para o público do Porto. As infraestruturas instaladas não oferecem condições e é muito difícil para um programador encontrar uma sala bem equipada e com capacidade de acolher uma programação regular de cinema. Há, no entanto, algumas instituições a trabalhar e a exibir cinema. Destaca-se, entre todas, o trabalho da programação da Medeia no Teatro do Campo Alegre, que tem sido uma referência de qualidade e estabilidade num contexto difícil. O Cineclube do Porto procura construir uma rede de parceiros que lhe permitam estar em contacto com o público nas condições necessárias para se exibir cinema com qualidade.
C7A: O que é feito do grande número de sócios que esta instituição já teve?
CCP: Ao longo dos anos, associados do Cineclube do Porto foram deixando de renovar as suas quotas à medida que a sua programação foi sendo mais esparsa e irregular. Desde 2010, quando se reiniciaram atividades regulares, aumentou o número de pedidos de associação e renovação das quotas. De qualquer forma, o número tem variado de forma irregular, não sendo ainda claro para nós quais os fatores que determinam esta situação. Por um lado, é possível que resulte da própria forma como as pessoas hoje se relacionam com as associações e com o compromisso de ser associado de um determinado grupo, por outro lado, consideramos que esta flutuação pode derivar da forma como organizamos e envolvemos o público nas nossas atividades. É uma questão que tem sido muito discutida e têm-se implementado estratégias para tentar compreender melhor este assunto.
C7A: Porque não volta o cineclube do Porto ao ativo, numa outra sala de cinema?
CCP: O Cineclube do Porto está hoje regularmente ativo apresentando aproximadamente 35 sessões por ano, com sessões todos os meses. Temos um ciclo de programação regular, quinzenal, durante todo o ano e dois ciclos de cinema ao ar livre, no mês de agosto. Além destas sessões que se repetem todos os anos, o Cineclube organiza sempre sessões de caráter excecional que vão surgindo ao longo do ano.
A ausência de salas devidamente preparadas para suportar uma programação regular e não tendo ainda capacidade própria de ocupar e apetrechar uma leva-nos a programar em vários locais distintos ajustando a programação ao perfil desses mesmos espaços. Nos dias de hoje, o Cineclube do Porto programa as suas sessões quinzenais no Cinema Passos Manuel e os ciclos de verão no Museu Nacional de Soares dos Reis e no jardim da Academia de Música / Bar Breyner 85.
C7A: Em que estado se encontra o espólio do cineclube?
CCP: O acervo do Cineclube do Porto está num estado de conservação aceitável. A maior parte carece apenas de uma limpeza e conservação com meios apropriados. Está em curso um processo de proteção e acondicionamento das várias peças consoante a sua natureza para poderem ser tratadas adequadamente. O Museu Nacional de Soares dos Reis e a empresa PIGMA têm sido parceiros fortes no acompanhamento do processo.
C7A: O público adere com facilidade à vossa programação? O cineclube cria uma programação pensada em exclusivo para o público?
CCP: Todo o processo de organização de um conjunto de filmes e atividades paralelas para apresentação pública – a programação – tem como conceito central e motivador o público. A programação de cinema pressupõe um espectador e, nessa medida, o seu conhecimento é um factor determinante na definição de um processo de escolha. Apesar disso, a ideia que organiza uma programação raramente se extingue no objetivo de atrair público. Em vez disso, procura-se propor programações pertinentes e apresentá-las de uma forma convincente para que os espectadores se mobilizem para as sessões.
C7A: É difícil criar uma programação de cinema mais independente e com clássicos do cinema, sem que não apareça muito público?
CCP: O público para o cinema existe e, portanto, existe também para o cinema independente e clássico, nacional e internacional. A criação de uma programação que resulte implica um conhecimento profundo quer do perfil do público quer, naturalmente, dos filmes e do potencial de fazerem sentido no contexto em que se apresentam.
C7A: Atualmente, em época de muita crise, onde as pessoas têm menos dinheiro para ir ao cinema, como conseguem gerir as contas do cineclube?
CCP: O fator que determina, de forma mais marcante, o equilíbrio financeiro do Cineclube do Porto é a possibilidade de ter uma equipa de trabalho integralmente voluntária. A ausência desse custo é, só por si, um fator que condiciona positivamente as contas. Além deste, também é verdade que a programação é feita à medida da nossa capacidade financeira. Estes condicionalismos representam grande parte do equilíbrio. Aplicamos os nossos recursos e projectos muito específicos que tentamos potenciar através do estabelecimento de parcerias. Depois há muito esforço da equipa de trabalho e muito rigor na gestão financeira.
C7A: Qual a importância deste cineclube para a cidade do Porto e qual a importância dos cineclubes hoje na sociedade?
CCP: Este, como qualquer outro Cineclube, é um espaço que pretende ser de divulgação de cinema. Com isto, refere-se um posicionamento ligeiramente diferente da formação de públicos. Em teoria, e é nesse sentido que orientamos a nossa postura, os cineclubes evitam o discurso elitista e restrito em relação ao cinema e procuram uma abordagem mais acolhedora.
No Porto existem, pelo menos 4 cursos de ensino universitário que de alguma forma integram o cinema nos seus planos curriculares. O Cineclube do Porto deveria ser um local de referência para aqueles que estão envolvidos com estes cursos, como sendo um local onde podem complementar e rever as suas referências cinematográficas. Por outro lado, existe também uma atualidade cultural/cinematográfica a que uma população como a do Porto tem de ter acesso em relação à qual o Cineclube assume querer contribuir.
C7A: Sentem falta de apoios do estado ou das câmaras municipais para os cineclubes?
CCP: Os recursos nunca são suficientes quando se exige à equipa de trabalho que o faça voluntariamente. O financiamento do setor do cinema é muito frágil. O governo central não alcança apoiar substancialmente a atividade dos cineclubes e muitas vezes as entidades locais não alcançam entender o potencial de desenvolvimento que representa ter uma população informada, com sentido crítico e sensibilidade.
C7A: Acham que deveria haver uma maior relação de parceria entre outros cineclubes do país?
CCP: Essa relação existe, embora ainda de forma pontual. Em Portugal, os cineclubes conhecem-se uns aos outros e apoiam-se. Existem com alguma regularidade parcerias de programação que mobilizam vários cineclubes. Atualmente, o Cineclube do Porto é um dos cineclubes representados na direção da Federação Portuguesa de Cineclubes. Nessa medida, temos vindo a dar o nosso contributo para que a rede de cineclubes se afirme enquanto tal. É um trabalho maioritariamente invisível, mas fundamental.
C7A: O cineclube só vive da dedicação e trabalho dos voluntários?
CCP: No que diz respeito à equipa de trabalho, sim. O cineclube tem trabalhado exclusivamente com uma equipa de voluntários. Acreditamos, no entanto, que só a profissionalização da equipa de produção permitirá consolidar o esforço e a atividade do Cineclube.
C7A: Película ou Digital?
CCP: Ambos. O avanço tecnológico empurra-nos necessariamente para o digital. É esse o suporte utilizado pelo mercado para distribuir filmes com qualidade. Simultaneamente, não existem recursos financeiros suficientes para transferir mais de 100 anos de história para um suporte de cinema digital, pelo que é essencial a acessibilidade a projetores de 35mm para se poder continuar a ver filmes com a qualidade do seu suporte original.
C7A: Um dos principais objetivos de um cineclube é o de discutir e refletir sobre cinema. Acha que os cineclubes hoje têm cumprido essa missão, para além da simples exibição?
CCP: O discurso sobre o cinema é um discurso que ganha novas formas à medida que o contexto em que os filmes se apresentam vai também mudando. É evidente o esforço que os cineclubes fazem por manter essa postura de divulgação do cinema. É algo que depende muito das circunstâncias específicas em que cada cineclube trabalha e da equipa que naquele momento se disponibiliza para a organização das sessões. De qualquer forma é uma prática muito frequente na atividade cineclubista.
Mais uma vez, um muito obrigado ao Cineclube do Porto.
Próxima paragem: Cineclube da Maia
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Uma ideia original de
Cinema 7.ª Arte
Texto de
Tiago Resende
Revisão de
Eduardo Magueta